“Vejam como se amam”? A intolerância entre católicos em rede

Escrito por omensageiro_master

Intolerância, ódio, indiferença. Discriminação, difamação, desinformação. Não, não se trata apenas daquilo que encontramos em boa parte dos grandes meios de comunicação. Também não se trata daquilo que circula nas redes sociais digitais em geral. Infelizmente, esse é o panorama das interações entre católicos e católicas em rede – ou, pelo menos, de indivíduos que assim se identificam. A pessoa que está do outro lado da tela já não é um “irmão ou irmã na fé”, mas apenas alguém sobre o qual se descarregam toda a raiva e o rancor pessoais, camuflados de defesa da tradição, da doutrina e da liturgia, com citações artificiosamente pinçadas da Bíblia e do Catecismo.

Nada nem ninguém estão acima desse “Tribunal da Santa Inquisição Digital”, nem mesmo o papa Francisco ou os bispos. No Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em sua “Mensagem ao Povo de Deus”, divulgada no encerramento de sua Assembleia-Geral em abril, reconheceu que “vivemos um tempo de politização e polarizações que geram polêmicas pelas redes sociais e atingem a CNBB […] A liberdade de expressão e o diálogo responsável são indispensáveis. Devem, porém, ser pautados pela verdade, fortaleza, prudência, reverência e amor”.
Ao contrário, cada vez mais, as redes sociais digitais convertem-se em patíbulos para a realização generalizada de novos “autos de fé”. Nessas “fogueiras digitais”, são condenados os supostos “hereges” atuais, expressão-agressão que circula abundantemente em páginas e grupos católicos nas redes, dirigida contra todos aqueles que têm uma visão de Igreja diferente da do agressor. Esses “linchamentos simbólicos” não ocorrem por determinação da hierarquia da Igreja, mas por decisão de grupelhos de leigos, que se arrogam o direito – e até o dever –, em nome da “sã doutrina”, de atirar a primeira pedra.

Os atores que dinamizam esse triste fenômeno intracatólico já ganharam algumas definições, como os chamados “catolibãs”, ou seja, católicos-talibãs, que atuam com base na violência simbólica (mas nem por isso menos preocupante e hedionda). Pregam a exclusão de tudo o que seja “catolicamente diferente” e de todos os “catolicamente outros”. Para tais extremistas, haveria apenas um único catolicismo, puro, cristalino, são e verdadeiro, sem nuances, bem delimitado e definido – pelos próprios esquemas e padrões mentais ou por documentos da Igreja de séculos passados.

O teólogo e historiador italiano Massimo Faggioli denominou tais grupos de “cibermilícias católicas”, dada sua militância venenosa em prejuízo da comunhão eclesial. Para ele, essas cibermilícias “usam uma linguagem extremista de ódio em defesa da ortodoxia católica. Elas não veem isso nem como vício nem como pecado”. Isso é grave, afirma Faggioli, porque pode originar uma eclesiologia que “humilha a Igreja, incluindo as suas lideranças institucionais que parecem impotentes perante a pressão social midiática”.
Recentemente, o papa Francisco sentiu a necessidade de se pronunciar com autoridade sobre esse fenômeno. Em sua última exortação apostólica, Gaudete et exsultate [Alegrai-vos e exultai]: sobre o chamado à santidade no mundo atual, ele dedicou um parágrafo inteiro a esses pecados digitais:

“Pode acontecer também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nas mídias católicas, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia. Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se ignora completamente o oitavo: ‘Não levantar falsos testemunhos’ e destrói-se sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada ‘é um mundo de iniquidade; […] e, inflamada pelo Inferno, incendeia o curso da nossa existência’ (Tg 3,6)” (GE, n. 115).

Fica claro que não se trata de algo menor, mas, como afirma o papa Francisco, de verdadeiras “redes de violência” paradoxalmente internas ao catolicismo, embebidas por difamação, calúnia, vingança, iniquidade, falsidade. O Inferno em rede. Propaga-se uma igreja paralela digital, que não condiz nem com os tempos (para tais católicos, só vale aquilo que veio antes do Concílio Vaticano II), nem com os lugares (qualquer tentativa de inculturação da fé nas expressões populares ou periféricas seria inconcebível), nem com as pessoas (o papa Francisco seria um “antipapa”, e os bispos brasileiros, simplesmente “trezentos picaretas”). Uma Igreja em mudança em mundo em mudança gera incerteza e insegurança demais para eles. E, para buscar certezas e seguranças, onde melhor do que em um passado eclesial mítico e na letra envelhecida e enrijecida de doutrinas de antanho? “Sempre se fez assim”, afirmam, “e assim sempre deve continuar sendo feito”…

Mas o papado de Francisco vai por outros caminhos. Ele pede uma “Igreja em saída”, em movimento, em missão. Em uma homilia na Casa Santa Marta, no dia 24 de abril, o papa comparou a Igreja a uma bicicleta: se ficar parada, cai. “O equilíbrio da Igreja”, afirmou, “está precisamente na mobilidade, na fidelidade ao Espírito Santo”.

 

OMSA IGERJA E COMUNICACAO Vejam como se amam A intolerancia entre catolicos em rede 2

 

Os católicos extremistas, ao contrário, defendem o imobilismo e a fixidez de dogma e rito. Buscam ficar fora dessa “Igreja franciscana”. Constroem universos eclesiais paralelos, especialmente em rede. Assim, tais católicos se manifestam como verdadeiros “e-reges”, hereges da era digital. Fazem uma “livre escolha” (em grego, hairesis) de aspectos do catolicismo que mais lhes agradam (mesmo que ultrapassados ou até fictícios) e das pessoas mais aptas, segundo eles, para comungar desse pseudocatolicismo. Tudo e todos os que não estão de acordo com a sua visão de Igreja devem ser excluídos.

Tal exclusão, muitas vezes agressiva e violenta, é comunicada em rede como excomunhão (do latim, excomunicatio) dos supostos “hereges”, ou seja, de todos aqueles que se desviam desse imaginário eclesial. Para isso, opera-se uma “excomunicação”, uma comunicação de que a comunicação alheia (do papa, dos bispos, dos demais católicos) deve cessar ou não deveria nem existir. “Excomunicar” é a comunicação voltada ao silenciamento ou ao aniquilamento de outra comunicação, para que o discurso próprio se torne único e dominante. “Excomunicando” os próprios irmãos na fé, tais católicos vão corroendo a comunhão eclesial. Ao agirem comunicacionalmente como não cristãs, essas pessoas se autoexcluem da comunhão eclesial. “Excomunicando”, excomungam-se.

A “autoridade digital” desses católicos fundamentalistas não vem do saber teológico (academia) nem do poder eclesiástico (hierarquia), mas de um saber-fazer e de um poder-fazer midiáticos. Muitas vezes, trata-se de pessoas sem qualquer relevância ou reconhecimento acadêmicos ou hierárquicos. Mas que captaram muito bem as lógicas das mídias digitais (saber-fazer) e dominam seus meios e linguagens (poder-fazer). E assim vão conquistando visibilidade, notoriedade e autoridade sociais e eclesiais, atuando em rede como “inquisidores digitais”.

Tudo isso explicita o possível “fim de um mundo” para a Igreja, marcado por declarações de autoridade institucional sobre a comunicação católica, como o imprimatur (‘imprima-se’, autorização da Igreja para a impressão de livros) e o nihil obstat (‘nada obsta’, permissão da Igreja para a publicação de livros). Mas tais “selos de garantia” não fazem sentido em um ambiente “desordenado” como o digital. Em rede, é o próprio indivíduo que se autocomunica como católico ou não, é ele mesmo quem atribui um “selo de catolicidade” àquilo que lê, escreve, compartilha.
Tertuliano (160-220), escritor eclesiástico da Igreja primitiva, testemunhava que os primeiros cristãos e cristãs viviam tão concretamente o “novo mandamento” de Jesus, que os pagãos exclamavam, admirados: “Vejam como se amam!” Não é bem isso que se vê hoje no ambiente digital. Então, o que é preciso fazer para que essa frase possa voltar a ser dita também em relação ao modo como os católicos e católicas se relacionam em rede? Continuaremos essa reflexão na próxima edição.

Moisés Sbardelotto

Edição de Setembro/2018

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