Muitas pessoas marcam nossas vidas e se tornam inesquecíveis. Seus gestos, suas palavras, seus sentimentos, suas lutas e seus sonhos nos inspiram e fortalecem. Além de nossos familiares, há aqueles que passam por nossa vida, ou em nossas leituras, mexendo com nossas entranhas. Não podemos mais viver sem pensar neles. Ficamos matutando a cada dia naquilo que fizeram na prática de suas vidas, como amaram e quais utopias carregaram na mente e no coração. Três dessas pessoas luminosas que tocaram meu coração foram Santa Terezinha de Lisieux, carmelita francesa; Irmã Maria C. Correa Lovera, religiosa paraguaia, das Franciscanas Missionárias de Maria; e dom Luciano Mendes de Almeida, jesuíta, arcebispo de Mariana e antes bispo auxiliar de São Paulo. Esses três santos penetraram os segredos divinos e mexeram com nossa vida. Pretendo compartilhar aquilo que deles aprendi sobre Deus e o amor aos pequenos.
Santa Terezinha, um grãozinho de areia
Santa Teresinha de Lisieux (1873-1897), nascida com o nome de Marie Françoise Thérèse Martin, desde criança, quis ser pequena e assumiu em suas cartas costumeiramente o uso de curiosos diminutivos. Ela se denominava com frequência de “o pequeno zero”, “grão de areia” e “gota de orvalho”. Para Santa Terezinha, o diminutivo e a pequenez possuíam uma fonte espiritual muito profunda. Sua mística e sua ligação com Deus passavam por esta pequena via. Ela dizia que, se alguém pretendesse subir a “Montanha do Amor”, deveria, como bom alpinista, abandonar o orgulho, a pressa, as vaidades ou grandezas. Quanto mais alta for a montanha, mais humilde deve ser o alpinista. Para o alpinista do amor, a subida deve ser precedida do reconhecimento da pequenez e a fidelidade e disciplina da ascensão se darão por esta serenidade de cada passo. Deus não consegue entrar em um coração fechado ou orgulhoso. Para Santa Terezinha, a pequenez é um meio efetivo e privilegiado de assemelhar-nos a Jesus. Ser pequeno é a porta para ser ainda mais amado e querido por Deus. Santa Terezinha ensinava que, para viver o caminho para Deus, é preciso permanecer como uma criança diante de Deus (cf. Mt 18,1-4).
Na carta 196, ela escreveu: “Apraz a Jesus mostrar-me o único caminho que conduz a fornalha divina, esse caminho é o abandono da criancinha, que adormece sem medo nos braços de seu Pai…” Não é só um reconhecer-se pequena do ponto de vista racional ou mental, como ato lógico e intelectual, que é o primeiro passo, mas, querer ficar pequeno, como identidade e atitude vital. Ou seja, descobrindo e compreendendo que somos pequenos e frágeis, e sabendo do nosso nada, podemos alegres e confiantes, nos jogar nos braços do Bom Deus, e curtir esse momento de colo divino, em que Deus, com imenso carinho, amor e misericórdia, trata-nos como um pai maternal e nos preenche com Seu amor.
Na caderneta amarela, escrita por Madre Inês de Jesus (?-1951), com relatos dos diálogos com Santa Terezinha, nos meses de abril a setembro de 1897, podemos compreender o que ela entendia por ser pequena: “É reconhecer seu nada, esperar tudo do Bom Deus, como uma criancinha espera tudo do seu pai; é não se inquietar com nada, não guardar nada de riqueza. Mesmo entre os pobres, dá-se à criança o que lhe é necessário, mas, logo que ela cresce, seu pai não quer mais alimentá-la e lhe diz: ‘Trabalhe agora, você pode bastar-se a si mesma’. É para não ouvir isto que não quis crescer, sentindo-me incapaz de ganhar minha vida, a vida eterna do céu. Fiquei, pois, sempre pequena, não tendo outra preocupação senão a de colher flores, as flores do amor e do sacrifício e de oferecê-las ao Bom Deus para seu prazer” (CJ 6.8.8). O ato de ser pequeno torna-se uma situação existencial teológica e espiritual profunda.
A imagem teresiana mais bela é aquela do pequeno zero com que Terezinha se autodenomina pessoal e teologicamente. Eis o que escreve em uma carta datada de 9 de maio de 1897, a padre Adolphe Roulland (1870-1934): “De fato, o zero por si mesmo não tem valor, mas, colocado ao lado da unidade, ele se torna poderoso, contanto que fique no lado certo, após e não antes!… É justamente lá que Jesus me colocou e espero ficar aí para sempre… Eu lhe peço, pois, meu irmão, que queira enviar sua benção ao pequeno zero, que o Bom Deus colocou ao seu lado” (CT 226). Claramente não são masoquismo nem irrelevância invertida. Sem qualquer pessimismo, Santa Terezinha assumiu a realidade de ser alguém que é quebrada, consumida, sabendo que, no céu, o grãozinho ou o zero está destinado a brilhar (cf. CT 74). Ao dizer-se gota de orvalho, disse que o orvalho só existe à noite e, assim que o sol dardeja seus raios, o orvalho destila pérolas, cintila luz e se muda em um leve vapor (cf. CT 141). Santa Terezinha valorizava tanto a pequenez e leveza do orvalho, que até chamava a Sagrada Eucaristia de orvalho (cf. CT 240).
Irmã Maria Correa (FMM), em busca dos mais pobres
Maria C. Correa Lovera (1940-1994), irmã franciscana paraguaia, fez-se religiosa aos 34 anos. Ela morreu em um acidente em Assunção, no Paraguai, depois de vinte anos de ação entre os pobres. Viveu uma vida muito, muito simples, mas profundamente mística e inspiradora. Quando terminou o período de formação, foi destinada para trabalhar com os camponeses de Eugenio A. Garay, na diocese de Villarica, no Paraguai. A primeira pergunta que fez às companheiras de missão foi: quem são os mais pobres da paróquia? Em seguida, ao andar pela diocese, descobriu, pelo sopro do Espírito, que havia pessoas ainda mais pobres: eram os irmãos indígenas do povo Mbyá. Após obter o sinal verde da provincial e do bispo diocesano, começou sua imersão entre os mais pobres entre os pobres. Quando tomou a decisão de realizar a missão, ela pensou nas privações que teria de passar entre os indígenas em seus assentamentos precários. Então, como uma atleta, começou a exercitar-se: no inverno, cobria-se com menos cobertores e roupas pesadas. Isso também ocorreu quanto aos alimentos e as vestes que passou a usar com austeridade e despojamento. Desde o início, anotava em uma caderneta pessoal os nomes das pessoas, das comunidades indígenas, sua situação, as rotas para chegar aos lugares mais difíceis, o que conversaram, o que ela via e sentia. Caminhadas imensas a pé, a cavalo, sozinha, com outras pessoas; riachos a ultrapassar, perigos, noites sem dormir. Dos primeiros momentos de rechaço, foi surgindo lentamente uma relação construtiva na fé e no amor. Assim testemunhou Irmã Blanca, que com ela esteve oito anos: “A radicalidade da entrega de Maria brotava por todos os poros: caminhava até 60 quilômetros para chegar ao irmão indígena necessitado; escutava-os incansavelmente, como se escutasse a Palavra de Deus. Sempre respondia às pessoas que lhe perguntavam se os indígenas conheciam Deus, dizendo: ‘Eu não necessito falar aos indígenas, porque eles é que me falam de Deus’. Acostumou-se a chamar os indígenas de seus príncipes e senhores. Para ela, cada viagem e cada encontro com o povo Mbyá eram ‘servir aos meus príncipes’. ainda que muitas vezes os encontrasse alcoolizados e doentes. Então dizia a uma religiosa: ‘Vês? Dás conta do quão difícil é servir a este meus senhores? Não é fácil aceitá-los como são, respeitá-los seriamente e colocar-se aos seus pés para servi-los’. Dizia que isso só era possível para aquele e aquela que se ‘apoiem na fé e no compromisso com Cristo; se não, não poderá perdurar essa entrega’. Esta mulher tão simples conheceu a Deus profundamente, junto aos pobres e indígenas do Paraguai. Ela chegava a pedir licença às roseiras para cortar uma flor para a capela das irmãs: ‘Te peço permissão, minha roseira, para cortar tuas flores, para adornar minha capela, para que juntas possamos louvar ao Nosso Criador’. Ela foi a semente pequena que germinou no coração do povo indígena, vivendo por eles, como uma autêntica franciscana”.1
Dom Luciano Mendes, o doutor dos pequenos
Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida (1930-2006) foi um dos maiores intelectuais que o Brasil conheceu. Padre jesuíta, depois bispo católico, fez-se obediente ao Evangelho em sintonia absoluta com Cristo, que movia Seu coração e Seus passos. Em nome de Jesus, viveu e morreu. Como um santo. Mente privilegiada, fez uma radical e profunda opção pelo outro e pelos pequenos. Compreendeu, desde menino, que estava consagrado a cuidar de todos aqueles que não tinham um ninho para serem alimentados. Assumiu, desde cedo, a tarefa pessoal do cuidado. Fazer os pobres felizes era sua felicidade. Como disse Santo Agostinho de Hipona (354-43): “O pobre clama, o Senhor escuta. E como me tornarei pobre para clamar? Mesmo que possuas alguns bens, não presumas de tuas forças. Entende que és indigente, compreende que és pobre enquanto não tiveres aquele que te enriquece. O anjo do Senhor acampará ao redor dos que o temem e os livrará”.2 Dom Luciano ouviu o clamor do pobre, pois compreendeu claramente que o Cristo é nossa maior e única riqueza. E que o Cristo se revela no pobre e na pequenez. Ele fez verdadeira a palavra de Jesus, guardada por Lucas em seu Evangelho: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos” (Lc 10,21). Ou pela comunidade de Mateus relendo o Salmo 8,3, quando afirma: “Da boca dos pequeninos e das criancinhas de peito preparaste um louvor para ti!” (Mt 21,16d).
O cotidiano desse pastor engajado em favor de toda pessoa humana, iluminado pela opção pelos pobres, foi sempre marcado por gestos concretos de solidariedade e amor. Sem-teto, pessoas que moravam em cortiços, mulheres marginalizadas, favelados, moradores de rua e crianças abandonadas consideravam-no como pai e mãe ao mesmo tempo. Sua agenda tinha muito mais que 24 horas diárias. Seus gestos revelavam Jesus e a bondade do Pai que a todos ama compassivamente. Nem acidentes, nem doença, nem fragilidade do corpo impediam sua presença e suas palavras de esperança. “Em que posso lhe servir?” era sempre o mote inicial. E havia realidade depois da resposta. Não era retórica ou conversa ‘para boi dormir’. Dom Luciano levava a sério a encarnação. Ela a compreendia tão firme, como Santo Ignácio de Loyola (1491-1556) a pensou. E fez da sua ação um gesto permanente de contemplação. E sua vida se tornou uma missa permanente.
Dom Luciano sempre sonhou com meninos pequenos conduzindo a esperança do povo, tal qual Isaías sonhara em seu belo canto utópico (cf. Is 11,6). Sempre acreditou no amor presente em todo ser criado por Deus, só esperando a palavra certa para eclodir e manifestar-se, tal qual Jesus com seu “Effathá” (Abre-te!), quando, atravessando a região da Decápole, Lhe apresentam um surdo-gago para ser curado. O religioso sempre esteve rodeado de crianças chegando inclusive a colocar sua mitra de pastor na cabeça das crianças da Favela de Vila Prudente (RJ), em imagem memorável da cena jesuânica plena de alegria pascal: “Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais, pois delas é o Reino dos Céus” (Mt 19,14).
Ele descobriu que o mais importante para ser alguém é fazer que o outro fosse assumido como irmão para viver feliz. Não há humanidade plena sem fraternidade ativa e comunhão pessoal. Ao fazer-se pobre, em sua vida pessoal, vestes, lugar de moradia, transporte, não só tornava crível a mensagem que transmitia, como também questionava os valores do desperdício, do consumo e da mercantilização da vida e dos sujeitos. Ao tratar com dignidade os últimos, amava a todos. Ao valorizar o que era pobre, rejeitado, desprezível aos olhos do mundo, refez o caminho do apóstolo Paulo entre os pobres do porto de Corinto, podendo também dizer: “Não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura para o mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e, o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é, a fim de que nenhuma criatura se possa vangloriar diante de Deus” (1Cor 1,26-29).
Cada um desses três personagens, em seu tempo e a seu modo, viveu o amor de Deus de forma humana e singela. Eles se fizeram pobres, os últimos entre os últimos. Ao realizar esse aniquilamento, que Paulo Apóstolo (5-67) chama de kénosis (do grego kénos, que se traduz por ‘vazio, zero, nulidade, esvaziar’), puderam encontrar Cristo em plenitude de coração aberto sem distrações. Os três, livre e alegremente, assumiram a cruz como o paradoxo central de suas vidas. Terezinha no Carmelo, marcada pela saúde frágil e a dura moléstia que a consumiu totalmente. Irmã Maria, atropelada por um ônibus, e o arcebispo Luciano, consumido pela doença na entrega aos pobres e à Igreja que tanto amou. Os três foram crucificados pelo amor. Nessa cruz que reduz o ser humano ao nada, ao vazio de si mesmo, resplandeceram no amor revolucionário do Deus Abbá, que tudo transforma. Ser zero diante de Deus é, portanto, o segredo maior do ser cristão. Assumir-se como orvalho é a porta da eternidade. Ser grão de areia é o mais que poderemos ser para Ser de verdade. Enfim, viver como pobres entre os pobres, lutando contra toda a miséria, é a maior das bem-aventuranças. Os três religiosos não só falaram do amor de Cristo, mas o viveram em seu cotidiano. Como eles, nós só poderemos entrar na alegria do amor se participamos do sofrimento do próprio amor. Sem humildade, não há amor que produza frutos. Cada um deles viveu o seu “Gólgota pessoal” para mostrar onde Deus está. Como afirmou padre François Varillon (1905-1978): “Quando a infância e a agonia coincidem, nos conhecemos a nós mesmos e conhecemos a Deus”3. O juízo final dependerá de nosso amor aos pobres e aos pequenos, fazendo-nos grãozinhos nas mãos amorosas de Deus (cf. Mt 25,40).
Referências
1. FANEGO, Justina, FMM. Jirones de una entrega. Asunción: Casa de las Hermanas FMM, 1996.
2. AGOSTINHO, Santo. Comentário ao Salmo 33. São Paulo: Paulus, 1997. p. 444.
3. VARILLON, François. L’humilité de Dieu. Paris: Le Centurion, 1974. p. 130.
Fernando Altemeyer Junior
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