O contexto e a mensagem da Laudato si’

Escrito por omensageiro_master

Para entender a riqueza e a profundidade da encíclica ecológica do papa Francisco (1936), a Laudato si’ (LS), teremos de voltar a um hoje longínquo 1968. Aquele ano marcou uma das rupturas culturais mais importantes da história recente de nossa sociedade. Jovens levantaram-se contra a ordem estabelecida, pedindo uma nova sociedade, sem repressão, com liberdade e um modo de viver mais humano e feliz. Infelizmente, certo irrealismo juvenil, a agressividade e o extremismo das propostas levaram ao fracasso do levante. A esquerda tradicional teve dificuldade de se adaptar aos acontecimentos, e aí se iniciou um declínio histórico que culminou com a desilusão gerada pela queda do Muro de Berlim e da ex-União Soviética. As esperanças e as frustrações de 68 marcam até hoje o perfil das esquerdas e dos movimentos alternativos de nossa sociedade. Foi ali também que se definiu a militância ambientalista tal como se apresentou nos últimos trinta anos do século passado: os jovens hippies e os revolucionários da época viram que o movimento ecológico representava a chance de continuarem seu caminho, agora de forma mais realista e construtiva – ainda que sempre alternativa ao status quo dominante do capitalismo.

Um abraço a “nova esquerda”
Das cinzas de 1968, um momento repleto de esperanças revolucionárias, mas que não conseguiu gerar a sociedade nova que prometia, nasceu uma “nova esquerda”, que substituiu a revolução pela inclusão social, relativizou o partido único do comunismo e incorporou novas bandeiras de luta, como o combate a todas as formas de discriminação, a posição da mulher na sociedade, os direitos das minorias e a questão ecológica. No Brasil, o discurso dessas novas esquerdas é conhecido como “politicamente correto”. Como incorporaram o discurso laicista e individualista da mentalidade liberal, essas novas esquerdas se chocaram com a doutrina católica em temas como o aborto, a moral sexual e o combate às drogas. Esse choque – que apenas em parte pode ser entendido como a oposição entre “progressistas” e “conservadores”, ou entre “esquerda” e “direita” – marcou a presença da Igreja no mundo nos últimos trinta anos.
O papa Francisco, em grande parte em função de sua experiência na América Latina, percebeu que tal confronto afastava da Igreja muitas pessoas sinceras e de boa vontade, que estavam lutando pelo bem comum e/ou sofriam realmente com a discriminação e a intolerância. Assim, sua posição tem sido a de não se confrontar com essa nova esquerda, mas sim “abraçá-la”, reconhecer seu desejo de bem e suas motivações justas, procurando mostrar em que a doutrina católica pode contribuir para a felicidade pessoal e a construção do bem comum (cf. LS n. 13-15). Nessa perspectiva, a defesa do meio ambiente é um tema fundamental. É uma questão crucial para a sociedade atual – e nisso todos concordam hoje em dia. Todos os papas recentes, desde o beato papa Paulo VI (1897-1978), já haviam se dedicado a esse tema (ver LS n. 3-8), que não havia sido alvo de uma encíclica social específica (como aconteceu com temas como o trabalho, a economia, a paz etc.).

O enfraquecimento da “utopia” ecológica
OMSA REPORTAGEM O contexto e a mensagem da Laudato si 4Entre 1968 e 1992 (ano da Eco-92, a Conferência sobre Meio Ambiente no Rio de Janeiro), a parcela mais significante do movimento ambientalista caracterizava-se por uma mentalidade utópica, que procurava uma alternativa ao capitalismo e ao “socialismo real”, e afirmava que apenas mudanças radicais poderiam salvar a humanidade tanto da crise ecológica quanto de nosso modo cada vez mais desumano de viver. A grande luta era para que a sociedade e os governos reconhecessem a urgência da conservação do meio ambiente e de um novo modelo de civilização. O desenvolvimento sustentável definia para muitos um novo paradigma ao capitalismo: um novo desenvolvimento em que as pessoas não procurariam “ter mais” e sim “ser mais”, em que a busca por harmonia ocuparia o lugar do consumismo.
A Eco-92 é o momento emblemático em que a sociedade ocidental se dá conta que as advertências ambientalistas são verdadeiras, a sustentabilidade é incorporada à reflexão econômica mais avançada e os governos passam a valorizar os pactos internacionais para a defesa do ambiente. A vitória, porém, foi ambígua. O capitalismo percebeu que a ecologia era uma grande oportunidade para bons investimentos e os “econegócios” cresceram – com grandes vantagens para o meio ambiente, mas atrelando a questão ambiental à lógica capitalista. Ao mesmo tempo, a “vida alternativa” buscada pelos movimentos ambientalistas se tornou “qualidade de vida”, não mais outra forma de pensar a existência, mas sim um modo mais equilibrado de administrar o estresse e as metas da sociedade competitiva e individualista. O preço pago pela universalização da luta ambientalista foi a “domesticação” da utopia.
A esperança com relação aos acordos internacionais também durou pouco. O Protocolo de Kyoto (1997) é o exemplo mais evidente. Seu objetivo era diminuir a emissão de CO2, considerado o principal gás responsável pelo aquecimento global. Contudo, os Estados Unidos não ratificaram o acordo e os países em desenvolvimento foram “liberados” de cumprir as metas gerais do protocolo. Detalhe: os EUA e a China (considerado um país em desenvolvimento) são os dois maiores emissores de CO2 do mundo (ambos respondem por quase 40% das emissões mundiais), e o desmatamento das florestas tropicais (que acontece em países pobres ou em desenvolvimento, como o Brasil) responde por mais 15% das emissões. Em resumo: boa parte dos grandes poluidores ficou fora das regras do protocolo, inviabilizando-o. Além disso, depois da crise financeira internacional de 2008, muitos pensaram que a superação da crise econômica era mais importante que o meio ambiente – abandonando ainda mais procedimentos de conservação ambiental. Assim, podemos pensar a relação entre a mentalidade capitalista e o meio ambiente em três “tempos”. Antes de 1992, parecia difícil uma conciliação entre conservação e capitalismo. Após 1992, vingou a ideia de que o capitalismo podia se adaptar à conservação ambiental. Em um período recente, parece que a conservação poderia novamente ser submetida aos interesses do capitalismo.

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Rumo à “ecologia integral”

Muitos ambientalistas receberam com entusiasmo a encíclica do papa Francisco justamente por ele não medir esforços para demonstrar que a questão ambiental não é um problema de ajustes de nossa forma de pensar, mas sim de uma verdadeira transformação cultural, um novo modo de ver o mundo. Além disso, o pontífice é enfático na denúncia do fracasso dos acordos internacionais e na cobrança de mais comprometimento de governantes e líderes mundiais na defesa do meio ambiente. Assim, mesmo mantendo-se fiel à melhor tradição católica, reforça o movimento ecológico a partir daquilo que ele tem de mais fundamental e inovador. Como não poderia deixar de ser em um texto ecológico, parte da “convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo” e do “valor próprio de cada criatura” (LS n. 16). O mandato bíblico de “dominar a terra” (Gn 1,28) deve ser entendido como “guardar e cultivar a terra”
(Gn 2,15): esse domínio se revela, no plano de Deus, como uma responsabilidade de proteger e cultivar a natureza e não como uma autorização para um desfrute irresponsável (cf. LS n. 66). A responsabilidade por essa criação em que tudo está interligado vem, porém, intimamente associada ao fascínio e à gratidão diante do imenso dom de Deus que é a vida e a realidade para cada um de nós. A combinação de responsabilidade, fascínio e gratidão que perpassa toda a encíclica é particularmente evidente no preâmbulo (em que se sobressaem as citações ao patriarca Bartolomeu I [1940-], da Igreja Católica Ortodoxa, cf. LS n. 7-9, e a São Francisco de Assis
[1182-1226], cf. LS n. 10-12) e no capítulo II (O Evangelho da Criação).
O papa Francisco, contudo, irá sublinhar, ao longo de toda a encíclica, a íntima conexão entre a conservação do meio ambiente e a situação dos pobres de todo o mundo, pois “são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (LS n. 10, ver também, por exemplo, LS n. 2, 20, 25, 27-30, 48-52, 139, 148-149, 158, 232). Distancia-se assim de um ecologismo “de moda”, que se preocupa com os animais da floresta tropical, mas se esquece dos pobres com que se cruza nas ruas, e associa-se à grande corrente dos movimentos ambientalistas que pensam a questão ambiental em íntima associação com a questão social.
A encíclica também aborda a defesa da vida humana “em todas as suas etapas” (LS n. 117-120) e a valorização da família e de seu papel para uma justa ecologia humana (cf. LS n. 157, 213), a necessidade de condições justas de trabalho para todos (LS n. 124-129) e a crítica ao relativismo (LS n. 122-124). Trata-se da preocupação em resgatar o “sentido humano da ecologia” (LS n. 16), necessário para a construção de uma “ecologia integral” (título do capítulo IV da encíclica), que inclui claramente as “dimensões humanas e sociais” àquela ambiental (LS n. 137) e “exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia” (LS n. 225).

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Bento 2.0?
Ocorreram alguns episódios pitorescos em volta do lançamento da encíclica. Um foi o vídeo – que alguns consideraram desrespeitoso; outros, simpático – apresentando o papa Francisco como um super-herói na luta pela proteção do planeta. Outro foi o título de um artigo do vaticanista J.T. Allen, um dos mais conceituados em língua inglesa, que chamou Francisco de “Bento 2.0”, em uma analogia ao papa emérito e aos carros com motores mais possantes. Francisco como um Bento XVI (1927-), mas dinâmico? Para muitos, a afirmação parece absurda, pois os dois papas deveriam representar visões de Igreja totalmente diferentes… Mas no capítulo III da encíclica, “A raiz humana da crise ecológica”, Francisco reproduz a visão da cultura moderna consagrada por seu antecessor. O paradigma tecnocrático da sociedade atual
(LS n. 106-114) e um antropocentrismo despótico e desordenado (cf. LS n. 68-69, 115-121) tornaram a vida desumana e a harmonia entre desenvolvimento e natureza inviável. Nesse contexto, o relativismo prático dá as mãos ao utilitarismo e ao desejo de dominação. O poder humano torna-se uma ameaça para o próprio ser humano, pois “o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder”, como lembrava Romano Guardini (1885-1968) (LS n. 105). É nesse autor, um teólogo alemão da primeira metade do século XX, que encontramos o ponto de encontro intelectual entre Ratzinger e Bergoglio: Guardini é um dos autores preferidos de Ratzinger e é claramente o pensador que dá o tom na visão da sociedade moderna apresentada por Francisco.

Uma proposta crítica, mas de diálogo
Diz um antigo lema ambientalista: “Pensar globalmente, agir localmente”. Os dois últimos capítulos da encíclica trabalham nessa perspectiva. O penúltimo, “Algumas linhas de orientação e ação”, pensa grandes linhas para a gestão planetária dos recursos naturais. Esse capítulo traz alguns dos pontos mais polêmicos da encíclica, mas sua palavra-chave é “diálogo”. No capítulo, há uma dura crítica aos governos e aos organismos internacionais, por sua incapacidade de desenvolver linhas de ação e de cooperação internacional capazes de superar tanto os problemas ambientais quanto as desigualdades sociais: “Torna-se indispensável um consenso mundial que leve, por exemplo, a programar uma agricultura sustentável e diversificada, desenvolver formas de energia renováveis e pouco poluidoras, fomentar uma maior eficiência energética, promover uma gestão mais adequada dos recursos florestais e marinhos, garantir a todos o acesso à água potável” (LS n. 164). Para isso sugere a necessidade de uma “autoridade política mundial” (LS n. 175).
Para entender a referência a essa autoridade mundial, é preciso saber que ela é uma antiga admoestação da Igreja, que é “católica” – isso é, universal – e sempre viu nas disputadas entre as nações uma fonte de conflitos e injustiças. São João XXIII (1881-1963) e Bento XVI, por exemplo, já haviam apontado para tal necessidade. Além disso, essa autoridade, em uma visão católica, deve ser exercida de forma subsidiária e não autoritária, isto é, a autoridade central existe para ajudar, subsidiar, as realidades locais – e não para se impor a elas. No caso da Amazônia, por exemplo, essa autoridade serviria não para “vender” os recursos locais a potências estrangeiras – mas justamente para ajudar a população local a enfrentar a ganância do poder econômico e buscar formas alternativas de desenvolvimento que combinassem o bem-estar da população com a contribuição dos ecossistemas amazônicos para os equilíbrios ecológicos globais. Também afirma a necessidade de “aceitar um certo decréscimo do consumo nalgumas partes do mundo, fornecendo recursos para que se possa crescer de forma saudável noutras partes” (LS n. 193). A ideia é ousada, mas perfeitamente factível. Com qualidade de vida equivalente, um
norte-americano produz bem mais lixo que um europeu, por exemplo. Portanto, é perfeitamente possível em países ricos haver qualidade de vida consumindo menos.

O consumismo e a conversão ecológica
Mas como alguém, mesmo podendo consumir mais, vai querer consumir menos? Como resistir ao consumismo da sociedade atual? Francisco explica: “Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o coração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e consumir” (LS n. 204). O consumismo é um resultado do vazio existencial do homem moderno. Uma “sobriedade feliz” implica uma paz interior, e isto exige uma espiritualidade adequada (LS n. 225). Por isso Laudato si’ termina com o convite a uma “conversão ecológica”, a um reencontro com Deus, uma espiritualidade mariana e duas orações: uma que pode ser rezada por todos os crentes que compartilham a noção de um Deus de amor e outra “pedindo que nós, cristãos, saibamos assumir os compromissos para com a criação que o Evangelho de Jesus nos propõe” (LS n. 246).

Francisco Borba Ribeiro Neto
Setembro/ 2015

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