O tema da fraternidade, do fraternismo, ou simplesmente da vida fraterna, parece ultrapassado. Muitas palavras e parcas ações. Aos ouvidos do mundo e dos franciscanos, por vezes, certas leituras sobre o tema chegam a irritar. São moralizantes, tacanhas e estreitas.
Aconselho, porém, admoesto e exorto meus frades no Senhor Jesus Cristo que,
quando vão pelo mundo, não litiguem nem contendam com palavras (cfr. 2Tm 2,14),
nem julguem os outros; mas sejam amáveis, pacíficos e modestos, mansos e humildes,
falando a todos honestamente, como convém (Regra Bulada, n. 3).
Assim escreveu Tomás de Celano (1200-1265) a respeito de São Francisco de Assis (1182-1226): “Foi seu constante desejo e vigilante cuidado manter intacto entre os filhos o vínculo da unidade, de modo a viverem concordes no seio de uma mesma mãe todos aqueles que tinham sido atraídos pelo mesmo espírito e gerados pelo mesmo pai. Queria que reinasse a união entre grandes e pequenos, que os sábios e simples comungassem em um mesmo amor fraterno, e que, pela força do amor, unidos se sentissem os que longe se encontravam”.
Não se trata, para haver fraternidade, de estarmos como que tropeçando uns nos outros, o tempo todo, ritualisticamente, rotineiramente, infantilmente. A fraternidade não se resume a encontros relativamente formais e calorosos em uma sala de convivência ou mesmo em uma capela em momentos de oração comunitária. Instantes cumpridos religiosamente que talvez sejam mera justaposição de pessoas, sem que a prece brote de corações unidos. Esses e outros encontros dos quais participamos, no entanto, são instrumentos de afervoramento da vida fraterna, sacramentos de alguma coisa bem maior do que aquilo que existe até aquele momento. Consistem em “muletas” que podem nos levar a fazer a experiência teologal da fraternidade. Exprimem o que há e clamam pelo que pode ainda vir. A fraternidade, de modo especial aquela vivida por São Francisco, é dom e tarefa.
Aqui não é o espaço de esboçar o cenário das transformações de nossos tempos. Há sombras. No entanto, persistem gestos belos e eloquentes de vida fraterna. Santa Teresa de Calcutá (1910-1997) viveu o dom e se tornou símbolo do amor pelos irmãos. Milhões de pessoas vivem a ventura do amor fraterno, anonimamente, ocultamente, belamente. Mas de outro lado. Quanta dor. Esses migrantes com trouxa nas costas e olhar vago deixam as terras da miséria. Esses barcos que afundam. Esses moços e moças violentados. Essa solene indiferença. Essas pessoas que esqueceram a arte de olhar olhos nos olhos. Terrorismo, desvio de dinheiro público, pessoas que são usadas, violência, palavras de baixo calão, gestos obscenos, tiros, balas perdidas, corpos que desaparecem, sepultamentos frios de tantos que morreram de vários modos. Talvez até, quem sabe, no seio das religiões, nada mais que o legalismo cego que revolta. Tudo aponta para a necessidade de uma vida fraterna.
“Vivemos como que ‘na defensiva’, cada vez mais incapazes de eliminar distâncias para adotar uma postura de amizade aberta a todas as pessoas. Acostumamos a aceitar somente os mais próximos, quanto aos demais, nós os toleramos ou os olhamos com indiferença, senão com cautela e prevenção. Ingenuamente pensamos que, se cada um se preocupa em assegurar sua pequena parcela de felicidade, a humanidade continuará caminhando para seu bem-estar. E não nos damos conta que estamos criando marginalização, isolamento, solidão. E que nesta sociedade vai ser cada vez mais difícil ser feliz”.

São Francisco é o irmão
Para o Poverello, seguir o Evangelho é viver em fraternidade, com o irmão de perto e o irmão ausente, irmãos que chegam, irmãos sábios e pouco doutos. Irmão Sol, Irmã Lua, Irmão Lobo, irmãos ladrões e salteadores. São Francisco, sua figura, com o passar dos séculos, é um convite para que acordemos para o fraternismo. Ele é um alegre dançarino da vida cercado de irmãos e de irmãs, tão fortemente que chega mesmo a chamar a morte de sua irmã: a Irmã Morte.
A fraternidade é um dom do Espírito Santo
Quando iniciou sua aventura espiritual, o Poverello não pensava em fundar uma fraternidade ou uma ordem. Tudo começou com o desejo de viver de verdade os apelos do Evangelho. O período de clarificação de seu caminho espiritual durou algum tempo. Nessa ocasião, alguns homens de Assis manifestaram a vontade de “partilhar aquele estilo de vida”. São Francisco nunca se esquecerá da chegada de tantos: “Depois que o Senhor me deu irmãos, ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Altíssimo mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho!” (Testamento 14).
Os irmãos constituem um dom do Senhor a ser acolhidos na fé. A fraternidade evangélica não é, em primeiro lugar, um dado sociológico. O Espírito inspira homens de diversos horizontes a se unirem para viverem o Evangelho como irmãos. A vocação de todo homem, a fortiori do cristão, não se realiza a não ser “na” e “pela” fraternidade. A própria Igreja não pode ser outra coisa senão um esboço profético da fraternidade universal, laboratório do amor filial e fraterno. Nunca nos esqueceremos de que Jesus afirmou que, quando dois ou três se reunissem em Seu nome, Ele estaria no meio deles.
Ficamos sempre encantados com a descrição do que se passava nas primeiras comunidades cristãs: “Eles mostravam-se assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações. Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham-se tudo em comum: vendiam suas propriedades e bens, e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um. Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo” (At 2,42.44-47).
Tornar-se próximo de todo ser humano
A fraternidade, o amor vivido nos relacionamentos é o único caminho que se abre para a verdadeira vida, para uma vida que seja eterna. À pergunta do doutor da Lei que interroga Jesus a respeito do que é preciso para ter a “vida eterna”, Ele responde: “Que está escrito na Lei? Como lês?” Ele, então, respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e a teu próximo como a ti mesmo”. Jesus disse: “Respondeste corretamente; faze isso e viverás” (Lc 10,25-28).
Na parábola do bom samaritano, vê-se claramente que o sacerdote e o levita ficaram preocupados com a observância da Lei, esquecendo-se de socorrer alguém jogado à beira do caminho. Misericórdia? Ver no outro um irmão?
Viver como irmãos precisa ser uma boa-nova em atitudes
A primeira missão dos discípulos de Cristo é construir a fraternidade universal. Esse é o maior desafio lançado aos cristãos hoje, em um mundo marcado pela indiferença e por manifestações de violência que atestam falta de respeito pelo outro. É preciso que toda comunidade cristã se torne um lugar em que qualquer pessoa possa se descobrir irmã, em que cada um, pecador ou mal-amado, rico ou excluído, seja acolhido com respeito pelo que ele é e não por seus títulos e poderes. Todo grupo cristão será um esboço modesto, mas real do Reino de Deus. Por meio da qualidade de nossos relacionamentos, é um pouco desse Reino que emerge lentamente das trevas do mundo. Os primeiros cristãos impactaram. As pessoas diziam: “Vede como eles se amam”. A evangelização é, antes de tudo, um contágio de amor. Michel Hubaut (1939-) assim se exprime: “Os liames de amor vividos por nossas fraternidades deveriam ser de tal monta que as pessoas pudessem dizer: É verdade! O amor se aproximou de nós”.
Fraternidade, dom e tarefa
Como todos os sonhos de Deus, a fraternidade é dom e, ao mesmo tempo, tarefa que interpela nossa responsabilidade. Construir constantemente não é, em primeiro lugar, questão de horários e de estruturas. Pressupõe o acolhimento sincero do apelo do Senhor que nos desinstala de nossas seguranças, colocando-nos a caminho para ousar, com lucidez e audácia, viver aqui e agora utopia da fraternidade universal em nossa realidade concreta, com os irmãos com os quais nos é dado viver precisamente este hoje”. Destacamos a ideia de viver este hoje.
Vindo em nosso auxílio
Segundo Eloi Leclerc (1921-2016), “a vida evangélica não é absolutamente busca da fraternidade de puros. Não se trata de sonhar com uma fraternidade ou uma igreja de pessoas puras, mas aceitar de viver com os irmãos, com todos os irmãos, não somente com os justos, mas também com os medíocres e pecadores. Não só com os sadios, mas também com os doentes e com o estropiados… E no meio de todos esses trata-se de testemunhar a imensa paciência de Deus, seu inesgotável perdão e sua graça. Quando se dá este testemunho, então começa aqui e agora o Reino de Deus: a luz do Evangelho brilha na obscuridade do mundo”.
Viver o Evangelho em fraternidade
Os que caminham pela vida inspirados por São Francisco vivem, querem viver, uma vida evangélica. Fazem-no em uma comunidade de irmãos. Não constituem uma “equipe de trabalho” em vista de um êxito, mesmo de ordem pastoral. Os que querem viver segundo seu jeito não são meros “tocadores de obras”. Não são apenas pessoas educadas umas com as outras. Estabelecem laços de profunda comunhão. São iguais na diferença, respeitam-se profundamente, tomam a decisão de ajudar o outro a crescer. A eles, que são seus irmãos, manifestam com confiança suas necessidades. Os que se estimam fraternalmente evitam cólera, murmuração, julgamentos apressados e negativos.
Uma fraternidade acolhedora
A fraternidade franciscana, em sua pequenez e modéstia, quer ser fermento, irradiação. Sente-se constantemente em construção. Nunca está pronta e acabada. Os mais antigos vão partindo e chegam os novos. Homens irmãos com outros homens irmãos. Fracos e frágeis vivendo na força do Senhor. Enraizados nesta terra, mas chamados à utopia do Reino. Vivendo a fraternidade local, mas abertos à grande fraternidade. Pessoas vivendo a própria vida, mas vivendo com outros uma história de salvação. Uns e outros limitados como tantos pobres, mas escrevendo juntos uma história de salvação.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Edição de Outubro/ 2018
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