Publicado na edição de Maio/2015
Os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) contam-nos que, após o batismo de Jesus realizado por João Batista às margens do Rio Jordão, o Nazareno foi movido e impulsionado pelo Espírito para o meio do Deserto de Judá, distanciando-se do Jordão. Foi para o meio do nada e nesse lugar de mortes reais, ser tentado e verificado em Suas opções primordiais. Essa seria a primeira de muitas provas de fogo do profeta, na escolha livre de um caminho libertador e na escolha da mensagem sapiencial para dirigir ao povo de Israel. Sob aquele sol escaldante do deserto, jejua deliberadamente por um largo tempo (simbolicamente quarenta dias), sem nada comer nada ou beber, sem familiares ou companheiros, em completa solidão. Jesus precisa tomar decisões nucleares para fazer florescer o projeto de Deus, que aconteceria por meio da graça e da força do Espírito de Deus. Os evangelistas Mateus (cf. Mt 4,1-11) e Lucas (cf. Lc 4,1-13) apresentarão de forma dramática a experiência de Jesus em Sua luta contra três tentações. Usando do gênero literário de um tentador externo à pessoa tentada, veremos com clareza como e a quem Jesus se manteve fiel, sem deixar-se contaminar pela imundície do mal.
A primeira cena é apresentada pelo demônio tentador, que diz: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pão” (Mt 4,3; Lc 4,3). A resposta clara e contundente de Jesus contra soluções simplistas e mágicas é retirada do livro do Deuteronômio: “O humano não vive somente de pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3b). Para vencer o diabo que quer magia, simulação, distração e mentira, Jesus apresenta a tradição mais antiga do código de Moisés: viver movido pelo sopro de Deus, acreditar na Palavra do Deus vivo e verdadeiro, partilhar no deserto, acreditar na solidariedade, ficar ao lado dos migrantes, dos pobres, das crianças, dos novos refugiados urbanos que vivem desprezados nas ruas de todas as cidades do mundo como cidadãos apátridas e sem direitos a nada: nem pão, nem casa, nem água. Jesus escolhe a graça de Deus e se nega a banalizar a vida e a pobreza. Ele rejeita o simplismo e a ausência de pensamento que geram a pior das maldades que é a banalidade do mal, que, como nos mostrou a filósofa Hannah Arendt (1906-1975), é um novo tipo de crime que pode atingir pessoas comuns que gritam por ética e moral, mas praticam o mal em seu cotidiano e não enxergam os irmãos caídos nas próprias portas e bairros. Executam ordens superiores ou agem como marionetes de grandes grupos ideológicos, sentindo-se defensoras da moral dos bons em luta contra os maus. São esses maniqueístas que tantas vezes fazem o mal ou ficam comodamente sentados em seus sofás sem nada fazer. Querem o pão nosso de cada dia só em suas mesas e abominam na prática a oração do “Pão nosso de cada dia” na mesa de todos. O diabo fala em pão vindo das pedras, mas quer reduzir Jesus a um objeto e escravo das coisas. O pão é fruto do trabalho e deve ser ofertado a todos como algo de Deus. Antes do pão, ouvir a Palavra de Deus que é o segredo e fonte de todo existir humano. Saber que somos pó não é um reducionismo, mas sim um privilégio e uma revelação. Somos pó divino, argila moldada nas mãos do Criador. Não somos só uma pedra ou comedores insaciáveis de pães, somos filhos amados do Pai de Jesus. Jesus não acredita que dinheiro, mercadorias, coisas emancipem e libertem o humano. Sabe que a alegria e a verdade estão em outro lugar e em outros valores. São os amigos os que, de fato, nos enriquecem, é a família que enobrece, são justiça e amor àqueles que constroem tesouros e é, sobretudo, o ouvir a palavra divina que nos sustenta na hora da dor e da morte. Será sempre possível negar o mal e indignar-se contra os maldosos e a mentira. Sempre é possível deixar-se guiar por Deus e seus anjos e não por Satanás e os espíritos impuros. “Embora sabendo-se como o ser humano pode ceder à violência extrema, o que deve ser posto em relevo é a resistência a essa tentação, como mostra o respeito que temos por todos(as) os(as) ‘Justos(as)’, por todas as Sophie Scholl e todos os Aristides de Sousa Mendes, que se recusaram a obedecer a ordens que implicavam o abandono dos mais vulneráveis a um destino que, por vezes, já se sabia ser um destino de morte. Sabemos que entre a gravidade e a graça (Simone Weil), houve os/as que, em circunstâncias difíceis, escolheram a graça. É a sua não banalidade que nunca devemos deixar de sublinhar”.1
Na segunda cena, no alto do Templo de Jerusalém, dirá o diabo: “Se és Filho de Deus, atira-te para baixo, pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que teu pé não tropece em nenhuma pedra’” (Mt 4,6; Lc 4,9b). A resposta clara e contundente de Jesus contra obrigar Deus a ser marionete ou “tapa-buracos” foi retirada do livro do Deuteronômio: “Não tentarás ao Senhor, teu Deus” (Dt 6,16). Não se pode por Deus à prova, como se fosse um brinquedo ou objeto. Tentar-Lhe é grave pecado daqueles que querem ocupar o seu lugar. Expulsam Deus para tornarem-se ídolos e ditadores. Usam da religião para dominar, alienar, obscurecer a visão e criar pessoas neuróticas ou drogadas. Usam da política de forma individualista e imoral. Tentam a Deus falando em Seu nome. Falam do bem, mas impõem o mal e a mentira. Foi assim que os dois maiores totalitarismos se expandiram no século XX: o nazifascismo e o stalinismo soviético. Um como ideologia da direita e outro de grupos de esquerda, ambos apresentando projetos de super-humanos, mas radicalmente negando a liberdade pessoal. Esmagavam os sujeitos para construir Estados totalitários. Usavam métodos similares, produzindo males destruidores de milhões de pessoas e povos, enquanto mentiam abusando de palavras como liberdade, democracia, moralidade, verdade, bem, felicidade e utopia. O autor búlgaro-francês Tzevtán Todorov (1939-) desnudou essa memória do mal e a tentação do bem criticando duramente aqueles que quiseram decidir a vida de todos sem ouvir as vozes plurais de nossas sociedades e cidades. Não se pode vender ou usar da liberdade humana para qualquer projeto político, econômico ou religioso sem que cada pessoa em sociedade pense e decida com autonomia e decisão. Não é por que se vestem com roupas vistosas e luminosas que o corpo real das democracias modernas seja de fato democrático. Há muito ouro de tolo. Há mais simulacro do que verdade. Há muitos discursos do bem, ditos por pessoas diabólicas. É preciso separar o joio do trigo. Muitos se deixam seduzir por esse canto de sereia que, ao final, destrói aquilo que diz construir. Aquilo que é feito sobre a areia desmorona. Ficar contra Deus ou querer abusar d’Ele é sempre uma decisão que afetará e fará sofrer ao próprio ser humano. Deus não é adversário, mas companheiro de nossa jornada. Todorov nos convida a resistir ao mal sem sucumbir à tentação do bem. A permanecer humanos no meio da tormenta. A fazer coisas simples para cada pessoa, independentemente de ideologias. Aquele bem imposto que acaba tornando-se um mal maior. Sentimentos como bem e amor se propõem, não se impõem. Pregar o pluralismo é vivê-lo diariamente pelo respeito ao outro e no diálogo como estilo de vida. Nem vitimizações, nem heróis, nem sacerdotes puros. Superar todos os maniqueísmos pela vivência livre e o reconhecimento do outro que me interpela e questiona. Não segregar, mas incluir e ouvir o divergente. Como cristãos, viver em Deus e no amor misericordioso sem recompensas e consciente de nossa fragilidade. Compreender a grandeza e a miséria do humano, eis a questão do momento. Não há guerras humanitárias, nem bombardeios cirúrgicos, nem higienização que seja ética. Punir os pobres, os negros, as crianças, os indígenas não é justiça nem democracia, mas sinais de vingança e de uma ditadura em gestação. Anos de imperialismos têm feito surgir milhares de células terroristas como ovos da própria serpente. A espiral da violência não será vencida com mais violência e armas. Assistimos a isso claramente na Síria, na Faixa de Gaza e, sobretudo, na aniquilação do povo Somali, que vive submetido aos grupos paramilitares financiados por russos, árabes e norte-americanos. Esses são os novos espíritos impuros da prepotência, da morte e da negação da vida. Resistir a sua ideologia e a seu poder é muito difícil e duro, pagando-se caro ao enfrentar tal idolatria. Perguntava-se Todorov: “Estaremos nós ameaçados, em um futuro previsível, pelo retorno de um mundo totalitário, ou mesmo só de seu espírito?”2
Na terceira cena, na mais alta das montanhas, proporá Satanás: “Tudo isso eu te darei, se de joelhos me adorares” (Mt 4,9; Lc 4,7). A resposta clara e contundente de Jesus será a de expulsá-lo, recordando novamente do texto do livro do Deuteronômio: “Adore o Senhor teu Deus, e somente a ele preste culto” (Dt 6,13). Jesus recusa cultuar e submeter-se ao demônio, porque é Filho do Deus vivo e verdadeiro, a quem ama como Seu Senhor e Pai. Recusa a ajoelhar-se como Seus antepassados o fizeram no deserto. Assume a causa da justiça e o amor aos pobres como eixo da Boa-Nova de Deus. Enfrenta na tríplice tentação as forças contrárias à vontade divina. Confronta as forças econômicas da exploração e da miséria. Desnuda as forças políticas da opressão e da mentira. E, enfim, decifra o discurso ideológico da alienação. Jesus enfrenta o diabo no campo psíquico sem cair na depressão ou na ansiedade doentias. Enfrenta o demônio na ordem social evitando a cegueira moral e a insensibilidade com as outras pessoas. Enfrenta Satanás retirando dele seu poder mentiroso e sedutor, fazendo-o beber do próprio veneno, ou, como Jesus diz, afogando-o com a mó. O cálice de Cristo é o cálice do amor, não do ódio. Sua vida é feita de entregas, sem magia ou manipulações religiosas. Jesus fica ao lado das vítimas e faz justiça “no” e “pelo” amor. Assim dirá o teólogo Adolphé Gesché (1928-2003): “O mal não escapa de Deus. Este não cessa de lutar e combater o mal, mas a luta é longa, porque é verdade que Deus deve e quer contar com nossa liberdade, que não pode suprimir como se fosse um faquir qualquer ou um mágico amador de fantoches e marionetes”.3 O demônio quer que acreditemos que o caminho para o bem passa pelo pecado e pela exploração dos demais seres humanos. O diabo quer que pisemos uns nos outros para subirmos na vida. É exatamente isto que nos faz o maior dos males: desumaniza-nos e nos afasta de nossa meta, que é a de amar e ser amado. O mal existe como excesso no demônio e como defeito no humano. É preciso combater com vigor a cada dia.
Saindo da região desértica da Judeia, Jesus voltará diferente e plenamente convicto para fazer seu caminho como pregador ambulante. Em meio a espinhos, serpentes, jejum e areia, brota a esperança de Sua missão evangelizadora. Do alto do monte das tentações, perto de Jericó, abre-se um novo horizonte de vida. O deserto sempre foi paradoxal: lugar de demônios e local de peregrinação rumo à liberdade da Terra Prometida. Era memória e esperança. Aqui temos um belo resumo simbólico e teológico do projeto de Jesus, que se assume como servo de Javé. Não mais uma vida cômoda, segura e plena de benesses, mas repleta de riscos e sofrimentos ao lado dos sofridos, perseguidos, sem-terra, sem casa, doentes e desprezados pelos judeus e pelos romanos. Jesus dirá um não retumbante ao deus-dinheiro, ao deus-poder e ao deus-ídolo.
As três respostas de Jesus são memória ativa do que o povo viveu no deserto depois de séculos de escravidão em terras egípcias. Sua fidelidade renova a fidelidade do povo de Israel, consagrado ao único Deus e Senhor. O povo sempre pode cair nas tentações da desconfiança, da acumulação e da prepotência. Jesus manteve-se fiel e não foi seduzido por Lúcifer, preservando Seu caso de amor com Deus, sem dividir Seu coração com falsos deuses. Sua história pessoal
identifica-se com a história profética de Seu povo, iluminando os passos de Sua consagração batismal como serviço à vida, à verdade e aos pequenos. Continuamos em novos desertos enfrentando novos demônios acompanhados do Espírito de Jesus para não esmorecer e para manter nossa fidelidade. A recompensa é uma vida simples e feliz, como a vida de uma família unida. Se obedecermos a Satanás, entretanto, sofreremos muito. Como diz Santo Antônio de Lisboa e Pádua (1195-1231) em seu sermão na festa da Cátedra de São Pedro: “Toda a sabedoria e prudência deste mundo é alimentar a carne e amontoar pedras, dinheiro. Essas pedras servir-lhes-ão para serem apedrejados no dia do juízo”.4 Diante do tentador, precisaremos fazer opções e decidir se queremos viver o Evangelho de Cristo ou não. Os que querem só poder, dinheiro e prepotência já fizeram a escolha diabólica. Os humildes sofreram as humilhações no caminho da justiça e celebrarão a Páscoa a cada amanhecer, na partilha e na amizade. Para essa batalha épica da vida, será sempre bom jejuar e guardar um tempo de oração no deserto. Ser cristão não é exigir privilégios, mas viver obediente a Deus e a Seu projeto. Viver assim como Jesus, tentado, mas não vencido. Derrotado pelo amor, nunca pelo ódio ou pela sujeira do demônio.
Notas
1. SANTOS, Laura Ferreira dos. Hannah Arendt: a não banalidade do bem. Disponível em: <http://www.publico.pt/mundo/noticia/hannah-arendt-a-naobanalidade-do-bem-1613762>. Acesso em: abr. 2015.
2. TODOROV, Tzevtán. Mémoire du bien, tentation du mal. Paris: Robert Laffont, 2000. p. 333.
3. GESCHÉ, Adolphé. O mal. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 169. v. 1. (Deus para Pensar).
4. PÁDUA, Santo Antônio de. Obras completas: Sermões Dominicais e Festivos. Introdução, tradução e notas de Henrique Pinto Rema. Porto: Lello e Irmão Editores, 1987. p. 781. v. 2.
Prof. Fernando Altemeyer Junior
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