OS “FIORETTI” DE SÃO FRANCISCO E SEUS COMPANHEIROS “A levitação de São Francisco”1

mar 5, 2023Assinante, Encontro com a Espiritualidade Franciscana, Março 2023, Revistas1 Comentário

Continuamos nossas reflexões e meditações em torno das deliciosas e comoventes páginas dessas “pequenas flores”, desses Fioretti de São Francisco de Assis (1182-1226) e de seus primeiros irmãos. Temos hoje diante dos olhos o Francisco tão amante de Deus que, segundo os relatos, se elevava da terra em êxtases e arrebatamentos. Esses momentos advinham quando ele começou a sentir novos e divinos arroubos. Trata-se do fenômeno místico da levitação. Na hagiografia, há casos de pessoas que, em oração intensa e fortíssima, experimentam “fisicamente” sensível visita de Deus, “levantam-se” ou “são levantados”. Êxtases, arrebatamentos. O corpo participando do encontro com Ele. O invólucro participando do mistério da Visita.

Estamos diante do tema da aproximação de Deus com o ser humano, tema da oração. Esta é expressão da natural necessidade de Deus. São Francisco viveu a oração, de modo particular, como resposta às visitas do Amado. Suas falas, seus escritos, sua maneira de viver dão a entender que seu ambiente vital era o da oração. São Boaventura (1217-1274), em seus escritos, falava da oração como um retorno da alma para Deus:

“Escuta: quando estiveres em oração, deves te recolher inteiramente, com teu Amado entrar na estância do teu coração, e a sós com ele deter-te, esquecendo todas as coisas exteriores. Com toda a tua mente, todo o coração e todo o afeto, com todo desejo e toda a devoção, deves elevar-te acima de ti mesmo… subir ao alto, com o ardor da devoção, até entrar no lugar da mansão admirável, até à casa de Deus; e aí, logo que os olhos do teu coração tiverem visto o teu Amado, logo que tenhas provado quanto o Senhor é suave e quanta é a multidão de sua doçura, lança-te no seu amplexo, imprime os teus lábios e penetra-o com o ósculo da íntima devoção. Deste modo, todo alheado de ti mesmo, todo arrebatado no céu, todo transformado: nem tu sequer tenhas forças para retrair o teu espírito”.2

No fundo, o tempo da oração é aquele do estar conscientemente diante do Senhor, em busca d’Ele, com um silenciamento, de alguma forma, das faculdades humanas. Esse tema não é fácil de ser abordado com justeza para que não sejam criados equívocos na mente de que lerem esse argumento. Só os agraciados serão capazes de descrever o que neles se passa. Os verdadeiros orantes escondem “os segredos do rei”.

O episódio ora narrado, que é objeto de nossa reflexão, põem-nos diante do Poverello, é claro, mas também desse carinhoso, querido, frei Leão. Sempre perto do Santo de Assis. Ovelhinha de Deus. Secretário do Pai seráfico. Amigo de Santa Clara (1194-1253) e de suas irmãs. Nessa parte, desenham-se diante de nossos olhos a figura do Francisco arrebatado em Deus e amizade fortíssima e encantadora de frei Leão e São Francisco.

Vamos nos aproximar do texto por partes. Frei Leão é testemunha única. O autor da página fica encantado com a figura desse frade. Este tem o privilégio de testemunhar a levitação do Seráfico Pai. “O bem-aventurado pai Francisco, quando começou a sentir novos e divinos carismas, naquela sua alma bendita, era frequentemente levantado da terra para o alto, não só mentalmente, mas, também corporalmente. E fazia-se ao redor dele, nas elevações, uma maravilhosa dispensação de Deus, ou seja, quanto mais sentia o acúmulo dos dons da divina graça, tanto mais era levantado da terra, como viram muitos companheiros dele, como testemunhas oculares particularmente Frei Leão, ao qual, por causa de sua columbina e até angélica inocência, mais frequentemente, São Francisco lhe permitia estar junto aos empenhos secretos de oração. Donde frei Leão mereceu muitas vezes ver o Pai levantado no ar, mais e menos segundo os graus dos sentidos supernos, pelos quais progredindo de virtude em virtude, era impelido para o alto para dentro de Deus”.
Seguem-se os detalhes da cena da elevação, com destaque para o fato de que frei Leão tentava tocar o corpo daquele que se elevava. Esse frade percebia a proximidade de Deus no corpo iluminado do Pai Seráfico:
“Algumas vezes, pois, frei Leão viu São Francisco levantado da terra, tanto que se podiam tocar os pés; outras vezes, porém, mereceu ver o mesmo pai santíssimo, levantado até o cume das árvores; outras vezes, em tamanha altura que apenas dava para vê-lo. Mas, quando podia tocar os pés do Bem-Aventurado Francisco, ele os abraçava e beijando-os, com devotíssimas lágrimas, dizendo: ‘Ó Deus, sê propício comigo, pecador’ e pelos méritos deste santíssimo homem faze-me encontrar a tua santíssima misericórdia’. E, quando o via tão levantado que não podia tocá-lo, prostrando-se devotamente debaixo de São Francisco, fazia uma oração semelhante à primeira. Ora, estas elevações do santo pai, aconteceram no Alverne e em muitos outros lugares”.

Textos para reflexão

“A oração cristã não é uma viagem ao fundo de si mesmo. Não é um movimento introspectivo. Não é uma diagnose dos nossos pensamentos e moções externas ou íntimas. A oração cristã é ser e estar diante de Deus, colocar-se por inteiro e continuamente diante de sua presença, com uma atenção vigilante àquele que nos convida a um diálogo sem cesuras. Não é oferecer a Deus alguns pensamentos, mas entregar-lhe todos os pensamentos, tudo o que somos e experimentamos.

A oração é uma conversão de atitude, porque a verdadeira oração cristã descentra-nos de nós mesmos – das nossas preocupações e afanos, dos nossos desejos egóticos e pouco purificados – e orienta-nos para Deus, o dom do seu olhar, que, como dizia Santo Agostinho, é mais íntimo a nós que nós mesmos”.3

 

Ressaltamos a menção do Monte Alverne, o local preferido dos franciscanos. Na rudeza daquele cenário, São Francisco ganhara em seu corpo os estigmas da Paixão de Jesus.

São Francisco abraçando Jesus Cristo na cruz, Bartolomé Estebán‏ Murillo

São Francisco abraçando Jesus Cristo na cruz, Bartolomé Estebán‏ Murillo

As últimas linhas desse episódio dos Fioretti constituem uma descrição do carinho e da atenção de frei Leão para com seu pai, feito imagem do Homem das Dores. Nada a dizer. Deixar que estas linhas nos tornem sensíveis ao amor de Jesus e ao carinho entre frei Leão e São Francisco:
“São Francisco confiava só a este frei Leão de tocar seus estigmas e trocar as ataduras, às quais ele renovava em qualquer dia da semana e as colocava entre aqueles cravos admiráveis e o resto da carne, a fim de estagnar o sangue e mitigar-lhe a dor, exceto às quintas feiras à tarde, e por todo o dia de sexta-feira, quando não queria que se pusesse nenhum remédio para que, por amor de Cristo, no dia da Crucificação, crucificado realmente nas dores da cruz, pendesse com Cristo”.

Nessas linhas, podemos observar a expressão de um assombro dos dois diante da morte e das dores do Senhor. Os franciscanos, ao longo de todos os séculos, sempre incentivaram o exercício da Via-Sacra e do êxtase diante de suas adoráveis feridas.
Para finalizar em alto estilo, segue este relato: “Algumas vezes São Francisco estendia com mais ardor diante do coração de frei Leão aquelas mãos assinaladas com estigmas tão veneráveis. Deste toque, frei Leão sentia tanta devoção no coração, que quase desmaiava, passando de repetidos soluços para um estupor salutar”.

Notas

1 FASSINI, Dorvalino Francisco. Fontes Franciscanas. 2. ed. Santo André: Ed. Mensageiro de Santo Antônio, 2020. p. 1005.
2 VEUTHEY, Leão OFM. Conv. Itinerário da mente para Deus. Tradução de M. M. Cunha Portugal. Montariol: Braga, 1948. p. 106-107.
3 Mendonça, José Tolentino Mendonça, O tesouro escondido: para uma busca interior. São Paulo: Paulinas, 2022. p. 72. (Coleção Dádivas do Infinito).

Autor

1 Comentário

  1. clemoco48

    Muito bom! Este relato!

    Responder

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *