Nesta edição, continuamos nossas reflexões sobre a celebração dos oitocentos anos dos estigmas recebidos por São Francisco de Assis, em 1224, no Monte Alverne. Em artigos anteriores, apresentamos aos leitores uma explicação geral desse evento. Agora, propomos um conteúdo mais específico, elaborado por André Vauchez (1938-), renomado historiador francês, especialista em espiritualidade e história religiosa na Idade Média1.
Introdução
No documento elaborado pelos responsáveis internacionais com orientações sobre as comemorações dos Jubileus Franciscanos, publicado em 2022, lemos: “Celebrar como Família Franciscana o centenário da impressão dos estigmas é um convite para recuperar na nossa vida cotidiana aquela dimensão do silêncio orante e contemplativo que nos coloca diante do essencial, que nos permite reconhecer o desejo pelo infinito que reside nos nossos corações, que nos permite escutar a nós mesmos, aos outros e a Deus. Na verdade, ainda hoje, o Poverello é apresentado como uma pessoa que fez da escuta um modo de vida: ‘São Francisco de Assis escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações’ (FT, n. 48)”2.
Com o passar do tempo e uma sucessão de altos e baixos de sua vida, São Francisco foi sentindo as forças diminuírem e as doenças se multiplicarem. Aqui e ali, percebia que de seu ideal primeiro não estavam sendo retiradas as consequências que constituíram o encanto de seu viver. Até o fim, não deixou de fazer ouvir sua voz e dar um testemunho. Tendo formalmente abdicado de toda posição de poder no plano institucional, ele quis dar o exemplo de uma vida evangélica e de perfeita humildade. Desse modo, instituiu, no seio da Ordem, paralelamente à hierarquia oficial, uma hierarquia fundamentada na santidade que lhe permitia oferecer a seus Irmãos um modelo a seguir e, mais tarde, uma lembrança da qual jamais poderiam esquecer.
O Monte Alverne e o evento da estigmatização
Nesse contexto (não tão sereno), podemos situar o retiro que São Francisco desejou fazer no verão de 1224 com alguns companheiros, entre os quais frei Leão. As circunstâncias desse recolhimento merecem uma atenção especial. La Verna, ou Alverne, é um lugar inóspito situado na Toscana, a nordeste de Arezzo, no coração de um maciço montanhoso que culmina com mais de 1,2 mil metros. Não tão distante dali, localizavam-se (e ainda se localizam) a Abadia e a Ermida de Camaldoli, centro de uma ordem monástica, a dos camaldulenses, surgida no século XI, fortemente marcada pelo ideal eremítico. Esse local de difícil acesso pertencia, no início do século XIII, ao conde Orlando di Catani (também conhecido como conde Orlando de Chiusi), um admirador do Santo de Assis. Segundo fontes históricas, ele teria doado esse lugar ao Poverello e seus Irmãos.
O Monte Alverne não se apresenta somente como um lugar elevado, solitário e arborizado. Lá, há um verdadeiro caos de rochedos que parecem testemunhas dos últimos sobressaltos da criação do mundo, abundando em cavernas e em abrigos naturais que oferecem condições propícias para um grupo de eremitas. O eremitismo veio constituir uma dimensão habitual da vida de São Francisco, que, a exemplo de Jesus, alternava períodos de pregação com outros consagrados à meditação e à oração, no contexto de uma natureza intocada e distante dos centros urbanos.
Seguimos os passos e as reflexões de Vauchez. São Francisco retirou-se para o Monte Alverne para passar na solidão a Quaresma de São Miguel, tempo consagrado ao jejum e à oração, que se iniciava em 15 de agosto (Dia da Assunção de Nossa Senhora) e terminava em 29 de setembro (Dia dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael). Sua devoção a São Miguel Arcanjo está assim expressa nas Fontes Franciscanas: “Porém, em razão do zelo pela salvação de todos os eleitos, o Santo tinha uma maior devoção e um especial amor pelo Bem-Aventurado Miguel Arcanjo, pelo fato de ter o oficio de introduzir as almas no Paraíso”3.
O Eremitério do Monte Alverne (onde São Francisco se hospedou com alguns companheiros, entre agosto e setembro de 1224) havia sido construído para estadias prolongadas, e as condições em que aí viviam os frades supunham um mínimo de organização. Alguns textos da época citam a presença de uma cabana, onde, juntos, os Irmãos faziam suas refeições; no local, havia também uma cela na qual o Poverello rezava e um altar sobre o qual estava o livro dos Evangelhos. Foi nesse período que ele recebeu os estigmas em seu corpo, quer dizer, as cinco chagas de Jesus Cristo (nas mãos, nos pés e no lado direito). De acordo com a tradição, a estigmatização ocorreu em 17 de setembro, data estabelecida pelo Capítulo Geral realizado em Cahors, na França, em 13374.
Notas
1. Cf. VAUCHEZ, André. François d’Assise: entre histoire et mémoire. Paris: Fayard, 2009. 550 p.
2. Disponível em: https://www.ofmconv.net/docs/famiglia-franc/centenario/Centenario_POR.pdf. Acesso em: ago. 2024.
3. FASSINI, Dorvalino Francisco (coord.). Fontes Franciscanas. 2. ed. Santo André: Editora O Mensageiro de Santo Antônio, 2020. p. 496.
4. Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/especiais/chagasdesf#gsc.tab=0. Acesso em: ago. 2024.
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