Missal Romano Origem, evolução e espiritualidade

ago 26, 2024Assinante, Momento Litúrgico, Revistas, Setembro 20240 Comentários

Missal Romano de São Pio V (Parte 6)

O Missal de São Pio V é uma compilação realizada a partir de várias edições anteriores, como podemos conferir no itinerário da formação do ritual da Ceia Eucarística. Partimos dos textos bíblicos, que são origem e inspiração para a celebração dos Sacramentos, passamos por alguns esquemas rituais entre os Padres da Igreja, destacando, sobretudo, proposições de São Justino de Roma (100-165), em sua Apologia I (155); São Hipólito de Roma (170-236), em sua Tradição Apostólica (século III); e as obras De mysteriis (380-390) e De sacramentis (387-391), de Santo Ambrósio de Milão (340-397). Em todas essas proposições, que trazem os passos para a formação dos rituais, sobretudo para a Missa, passamos para os Libelli (pequenos livretos atribuídos a São Leão Magno [400-461], que contêm orações eucológicas e preces eucarísticas). Depois passamos para os livros mais elaborados, sejam os antigos Sacramentários, dos quais destacamos o Gelasiano (em várias edições), o Veronense e o Gregoriano (antiga e nova edições).

Ao lado desses importantes Sacramentários, que trazem as orações para as celebrações dentro do Ano Litúrgico, encontramos os demais livros litúrgicos para a Missa, sejam o Antifonário, Lecionário, Graduais e das Preces Eucarísticas. Posteriormente, os vários textos dos Sacramentários foram unificados e então temos o Missal Plenário, com todas as partes da celebração, com exceção dos Lecionários. Os caminhos foram longos e por vezes complexos, sobretudo a partir da compilação do Missal Franco-Germânico, que vai estar na base do Missal de São Gregório VII (1020-1085), que se tornou o missal unificado para a Igreja do Ocidente. O Missal seria conservado como uma fonte de unidade da Igreja, com o propósito de zelar pela tradição milenar da Igreja que tem seus primeiros traços nas celebrações da comunidade primitiva.

São Pio V, século XVII, Escola Romana

São Pio V, século XVII, Escola Romana

O Ritual de São Pio V é um ponto de chegada de algumas edições prévias que serviram de fundamento para o Missal promulgado depois do Concílio de Trento (1545-1463)

Os prelúdios do Missal de São Paulo VI

Em 1969, quando São Paulo VI (1897-1978), três anos após a conclusão do Concílio Vaticano II (1962-1965), publicou o novo “ordo missae”, seu objetivo era conservar a tradição como um caminho histórico da Igreja e ao mesmo tempo integrar esta tradição no mundo contemporâneo, preservando os bens essenciais do missal, que subsistem desde os primeiros apóstolos, que foram se integrando na realidade dos povos de nossos tempos.

Antes precisamos considerar que o Missal Romano (Missale Romanum) é o missal próprio da Igreja Católica Apostólica Romana de Rito Latino, considerando que algumas Igrejas agregadas à Igreja de Roma, sob a unidade do Sumo Pontífice Romano, podem seguir outros ritos próprios, conforme sua tradição. O Ritual de São Pio V é um ponto de chegada de algumas edições prévias que serviram de fundamento para o Missal promulgado depois do Concílio de Trento (1545-1463).

Segundo pesquisas históricas, sabemos que a primeira edição impressa de um livro intitulado Missal Romano e que traz os textos para a celebração do Sacramento da Eucaristia, na tradição dos usos da Cúria Romana, é de 1474. O texto denomina-se Ordo Missalis secundum consuetudinem Curiae Romanae. Estamos a praticamente um século da promulgação de uma edição oficial do Missal Romano, ocorrida em 1570, sete anos após o término do Concílio de Trento (1545-1563) (também conhecido como Concílio da Contrarreforma), por São Pio V (1504-1572), que tomou para si a tarefa de promulgar os rituais sacramentais depois da conclusão do referido concílio. Nesse período de quase cem anos, conhecemos catorze edições desse livro litúrgico, sendo dez edições em Veneza, três em Paris e uma em Lyon, que sempre foram centros importantes do catolicismo naquele período. Nessas edições, encontramos modificações importantes que deixaram a desejar quanto à unidade e à harmonia dos textos.

As bases rituais do Missal de São Pio V

Com o término do Concílio de Trento que, segundo historiadores, estava se delongando por muitos anos, situação acrescida pelas distâncias das dioceses mais distantes da Igreja Católica na Europa, os padres conciliares delegaram ao pontífice a tarefa de elaborar os rituais e também responder a possíveis novas proposições apresentadas como contestação doutrinária ou mesmo definições disciplinares pelos reformadores, especialmente Martinho Lutero (1483-1546), mas também dos demais reformadores, ainda que menos incisivos e influentes.

A edição do Missal, de acordo com a Cúria Romana realizada em 1474, foi certamente a base de todas as demais publicações seguintes e serviu como base fundamental para a edição oficial do Missal de São Pio V, também conhecido como Missal Tridentino. Sabemos, pelas pesquisas históricas sobre as várias edições, que o Missal de Veneza, de 1497 (muito próximo do Missal de Roma, de 1474), está na base da edição de 1570. Com efeito, era denominado Missale secundum morem Sanctae Romanae Ecclesiae (‘Missal segundo o costume da Santa Igreja Romana’).

Após a promulgação do Missal de São Pio V, conhecemos poucas mudanças, incluindo a preservação sempre na língua latina. Vale a pena serem citadas, ainda que tenham sido modificações não tão significativas, preservando a tradição dos missais anteriores. Citamos, assim, as modificações do papa Clemente VIII (1536-1605), em 1604; do papa Urbano VIII (1568-1644), em 1634; do papa Leão XIII (1810-1903), em 1884; do papa Bento XV (1854-1922), em 1920 (que deu continuidade a uma revisão iniciada por São Pio X [1835-1914], seu predecessor). Outras reformas foram aplicadas pelo papa Pio XII (1876-1958), que realizou importantes reformas na liturgia da Semana Santa e da Vigília Pascal, quando mudou, além dos textos, também as estruturas e os horários das celebrações destes dias litúrgicos solenes. Finalmente, conhecemos uma última edição típica (a sexta edição), revisada pelo papa João XXIII, em 1962. Esse missal serviu como referência para o Missal de Paulo VI, como fruto do Concílio Vaticano II, sendo apresentado à Igreja, reformado e atualizado, em 3 de abril de 1969, com a Constituição Apostólica Missale Romanum: do Concílio Ecumênico Vaticano II, para perpétua memória1.

São Pio V, século XVIII, Escola Romana

São Pio V, século XVIII, Escola Romana

O contexto do Missal de São Pio V

Se retrocedermos na História, testemunhamos que o século XVI foi bastante conturbado, considerando todos os eventos decorrentes da Reforma, dita Protestante, que foram iniciados por vários reformadores, mas, sobretudo, por Martinho Lutero, em 1517. As críticas dos reformadores tocavam as estruturas da Igreja, mas particularmente as suas práticas litúrgicas. Mesmo no ambiente romano, havia um sentimento de renovação teológica, eclesial e pastoral, considerando os movimentos culturais, como o renascimento e as novas reflexões filosóficas. A busca de renovação se referia a esclarecimentos teológicos e normas disciplinares dos Sacramentos. Esse é o contexto do Concílio de Trento, que se formou a partir das contestações dos reformadores e neste ambiente é promulgado o Missal Romano, de São Pio V.

Conforme citado por Dionisio Borobio (1938-), os reformadores questionam a presença real no Sacramento da Eucaristia e não aceitam a missa como atualização do sacrifício do calvário. Em Trento, renovou-se a doutrina da presença real de Cristo nas espécies eucarísticas e o caráter sacrifical da missa. Importante ressaltar também que o Concílio catalogou uma série de abusos que deveriam ser superados na celebração, como o sacrilégio, a superstição e a simonia (BOROBIO, 1993, p. 232-240)2. A revisão das práticas litúrgicas, iniciada pelo papa Pio IV (1499-1565), foi complementada por São Pio V, com o objetivo de garantir a ortodoxia doutrinal e eliminar os abusos referentes aos Sacramentos.

No primeiro milênio, durante o Ofertório, predominava o silêncio, mas nos séculos seguintes foram acrescidas várias orações, incluídas no Missal de São Pio V. São Paulo VI insistiu na retomada do silêncio e resgatou orações mais simples e breves para destacar o gesto da apresentação das oferendas sobre o altar.

O processo de elaboração do Missal de São Pio V

São Pio V, c. 1566, Bartolomeo Passarotti

São Pio V, c. 1566, Bartolomeo Passarotti

A forma ordinária da celebração eucarística, segundo o rito romano em todo seu processo histórico, é o Missal Romano, atualmente reformado e publicado por São Paulo VI. Antes dessa importante reforma litúrgica, realizada no período pós-conciliar pelo referido pontífice, o Missal Romano previa a celebração pela denominada Missa Tridentina. Esse ritual segue a mesma estrutura do Ordo Missae, que é o Ritual Romano para o qual o ritual atual apenas acrescenta novas festas, sem destituir o Missal da tradição cristã. No ritual da missa denominada Tridentina, não se trata de um Novus Ordo Missae, pois é a retomada e reordenação a partir do Missal da Cúria Romana, que foi, como vimos, se formando em Roma alguns séculos antes e que foi difundido pelos franciscanos em muitas regiões do Ocidente. São Pio V retomou esse ritual, aplicando poucas modificações, e o promulgou como Missal, que precedeu ao Concílio de Trento.

Para responder aos questionamentos advindos dos confrontos com os reformadores, o pontífice diminuiu a quantidade das festas dos santos e propôs o Missal para a Igreja do Ocidente, deixando livres as tradições locais que seguissem os rituais da missa com dois séculos de uso local. Mesmo assim, o Missal foi amplamente adotado pelas igrejas locais, mesmo aquelas em que havia o missal bicentenário.
Retomando o processo da elaboração do Missal, o verdadeiro Ritus Romanus encontra suas origens (orações eucarísticas, símbolos, eucologia, entre outros exemplos) na tradição mais antiga, entre elas São Dâmaso (305-384), que também solicitou a São Jerônimo (347-420) a tradução da Bíblia do grego para o latim. Na trilha dessa elaboração, encontramos São Gregório Magno (540–604), e sobretudo o papa Gelásio I (410–496). Ao longo da história, permaneceu sempre o Canon Missae Romanae (‘Cânon da Missa Romana’). Até o pontificado do papa Pio XII, essa estrutura permanece intocável, quando ele modificou particularmente a liturgia da Semana Santa.

O Missal de Paulo VI trouxe uma grande renovação, com a publicação do novo Missal Romano, conservando sempre a tradição e integrando na linguagem do no mundo contemporâneo.

 

O encontro entre o sacrifício e o mistério pascal

Uma das discussões mais relevantes e apologéticas entre o Missal de São Pio V e o futuro Missal de São Paulo VI é a questão do sacrífico. Em seu pontificado, o papa Bento XVI (1927-2022) defendeu que não havia contradição entre os dois termos. Enquanto o Missal de 1570 coloca sua tônica sobre a espiritualidade do sacrifício incruento de Cristo, o Missal de São Paulo VI elevou o sentido do mistério pascal, referindo-se aos acontecimentos que se dão entre a manhã de quinta-feira até a manhã da Páscoa. Assim, a ceia é a antecipação da cruz, sendo a primeira seu evento fundante e a segunda seu evento místico do qual emana sua espiritualidade. A ceia antecipa o caminho do calvário e o sacrifício da cruz, incluindo em sua plenitude a ressurreição do Senhor. Trata-se de um evento unitário que realiza a ação salvífica de Cristo. Dessa forma, esse acontecimento que engloba o mistério pascal integra sua historicidade e ao mesmo tempo sua transcendência.

Compreendemos assim que esse acontecimento único é histórico e transcendente, sendo o mais perfeito culto prestado a Deus. Faz-se um culto divino que está presente ao longo da história, pelo qual se realiza sem cessar o mistério da salvação. Compreendemos que o acontecimento dos últimos dias da vida de Cristo é a mística da redenção que integra o sacrifício pascal de Cristo que se plenifica no mistério pascal. Unem-se à Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor.

Notas

1 Disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_constitutions/documents/hf_p-vi_apc_19690403_missale-romanum.html. Acesso em: ago. 2024.
2 A celebração na Igreja: os Sacramentos. São Paulo: Loyola, 1993. v. II.

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