Eucaristia – Gratidão e Oferta

ago 31, 2022Assinante, Revistas, Sacramentos da Igreja, Setembro 20220 Comentários

O ofertório é o limiar entre a Proclamação da Palavra e o Memorial do Senhor.
Aqui o ser humano e a Igreja encontram a si próprios, e ao Deus que cria, conduz e salva.

Somos o povo de Deus e nos reunimos para celebrar a ação de graças, que é o Sacramento da Eucaristia. Seguindo nossos artigos, estamos na parte quando a Oração sobre as Oferendas foi dita, e todos respondemos: “Amém!”, confirmando tudo aquilo. Agora, iremos iniciar a grande oração da Igreja, a Oração Eucarística, que dá o próprio nome ao Sacramento.
Em ambientes litúrgicos, sempre surgem as questões referentes ao “pode fazer” ou “não pode fazer”, o que acaba tornando a Liturgia da Eucaristia um conjunto de normas, práticas, gestos e outras ações que têm ou não têm apoio dos “espertos” na arte da celebração.




Isso é real e todos já encaramos situações de afirmação de uma ação ou negação de seu valor. Às vezes, a Eucaristia, em seus ritos, é um painel de experiências subjetivas e criações curiosas, o que demonstra a falta da Teologia da Liturgia, e em especial da Eucaristia. Por isso, é preciso abordar algumas questões que parecem oportunas.
Já iniciamos esse tema no artigo anterior, quando refletimos sobre a posição do altar e seu significado, ao menos de modo introdutório. Depois, discutimos se o conceito de “festa” se aplica de modo inequívoco ao Sacramento. Como estamos no limiar entre a Proclamação da Palavra e a Celebração do Mistério, abordaremos mais alguns dos assuntos que pressupõem uma Teologia da Liturgia.

Oferecer, agradecer ou pedir?

A prática fundamental na Eucaristia é a gratidão, e é a identidade do Sacramento: “Ação de graças”. Mas ela também apresenta a expressão do oferecimento, que algumas vezes é bem acentuado, de modo especial no rito do ofertório. Sabemos que a oferta é a de Cristo Jesus, e não de nossos dons. Outra prática é o pedido, sobre algo ou alguém que tem necessidade, seja de atenção, seja de saúde, seja de emprego, entre outros exemplos.
Eucaristia é, como temos insistido em todos esses artigos, anúncio da Palavra e memorial do Senhor. Os pedidos ou as intenções são acessórios da celebração. É certo que há formulários litúrgicos para situações particulares, como pedidos de saúde, boas colheitas, santificação do trabalho, e assim por diante. No entanto, é preciso observar o que já falamos sobre o conceito de “culto”, que tem a ver com “cultura”. Esta é o conjunto de pensamentos, fatos e disposições, bem como a história de tudo isso.


A cultura é vivenciada no culto, o que implica imersão na realidade, conhecimento, ao menos intuitivo ou afetivo, do que existe ali e será vivenciado. O culto é a expressão da responsabilidade de tornar ativo e real o que está difundido, vivenciado e acreditado. Então, não é apenas uma questão pragmática, que é busca de resultados ou obtenção de favores.


Os antigos romanos, como muitas outras civilizações, realizavam o culto para servir seus deuses e deixá-los contentes. Os cristãos realizam o culto para afirmar sua cultura, que é a adesão ao Mistério, o encontro com a Salvação que acontece em Cristo Jesus, e se expressa no alimento partilhado. Isso é a sua presença. Não se deve isolar o pão eucarístico de seu contexto cultual, mas mantê-lo dentro da Igreja, que são os batizados, povo de Deus. É preciso recordar, sempre, que esse pão não é o prêmio da santidade, mas o alimento da caminhada.


Celebrar a Eucaristia é ouvir a Palavra, ser por ela instruído e fazer a Memória do Senhor. A grande doxologia (que significa ‘louvor’), no final da Oração Eucarística, apresenta este sentido: “Por Cristo, com Cristo e em Cristo…” Cristo Jesus é o centro de tudo, e o sentido do que se celebra.

“Por Cristo, com Cristo e em Cristo…” Cristo Jesus é o centro de tudo, e o sentido do que se celebra.


Ao concluir a Oração sobre as Oferendas, pode surgir a impressão de que satisfizemos a vontade de Deus com nossos dons. Mas o dom que se oferta é o próprio Cristo. Na realidade, é fácil deixar essa perspectiva e cair na devoção. Esta se caracteriza pelo esforço humano de atingir Deus. Para isso, é preciso muita oração, muitas expressões de amor. Uma característica da devoção é o exagero, ainda que disfarçado. Já a particularidade do culto cristão é a simplicidade, a objetividade. Sem dúvida, ao longo dos séculos, e de acordo com os múltiplos ritos, muita complexidade foi acrescentada na celebração. Isso pôde ter destacado mais o Mistério ou evidenciado uma dimensão diferente, como a política, a artística, ou a teatral, com forte expressão passional.


O retorno à simplicidade e à clareza, com a verdade dos ritos, dos materiais e das ações, é o caminho a se seguir. Por isso, é possível a questão: agora, terminado o ofertório, o que deve acontecer? O ofertório foi o mais importante? Ou vai ocorrer algo maior? Vejamos: da mesma forma que a Palavra tem seu auge no Evangelho, quando o Verbo feito ser humano se expressa, também no Memorial existe um auge: a continuação do ato salvífico de Jesus, marcado no partir do pão.

Foto Sacramentos 02set22R

Assistir ou participar?

Essas são atitudes que parecem opostas, mas que podem estar em um plano único. Assistir implica olhar, em função da compreensão. Se é verdade que o amor pode nascer do olhar, é também verdade que é na compreensão do Amado que ele cresce e amadurece. Assistir é mais do que ver: é enxergar algo, alguém. A fé possui verbos associados que a definem em suas múltiplas etapas: ouvir, olhar, enxergar, compreender, seguir, amar. Por detrás desses verbos, há uma situação fundamental: comunicar!


Comunicação é interação entre duas partes. O ofertório, que há pouco analisamos, é um modo de comunicar. Outros modos foram as preces, as leituras, os gestos. Agora, inicia-se a grande Oração da Igreja, que é um modo de ir além.
Na reforma do Concílio Vaticano II (1962-1965), deu-se ênfase à “participação ativa e frutuosa” dos fiéis na Liturgia. A Eucaristia é a expressão litúrgica mais próxima da maioria dos fiéis. Participação ativa e frutuosa nessa circunstância é o envolvimento da atenção, com expressões físicas, intelectivas e afetivas. É fazer e saber fazer, orientado pelo significado da ação, não pela atenção despertada, emoção ou sucesso obtido.

Ofertório – deixar lá e retornar depois?

No Evangelho segundo São Mateus, encontramos um ensino de Jesus que frequentemente causa algum impacto nos fiéis. É assim: “Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão” (Mt 5,23-24a). O contexto da frase de Jesus é o culto hebraico, não é o ofertório cristão. Mas pode também ser usado como paradigma. A oferta apresenta um sentido no contexto da justiça, da verdade, da retidão: tudo em relação às outras pessoas. Não perfeição de vida, mas busca de comunhão com a vontade de Deus. A Liturgia, como ação do povo de Deus, nunca é um produto concluído, perfeito e imutável: é sempre uma construção, uma constante resposta às realidades da vida.
Se algum problema existe e pode impedir o culto, que é imersão no Mistério, então é preciso solucionar, ou, pelo menos, desejar a solução, com abertura de inteligência e de afeto.

Celebrar por devoção, costume ou adesão?

São muitas as motivações que levam os batizados até a Eucaristia. A melhor delas deve ser a adesão ao Mistério. Certas espiritualidades insistem na Eucaristia devocional, demonstração de afeto e dependência. Outras ressaltam os resultados da celebração, valorizando o número de vezes que se celebra. E há os que o fazem apenas por costume.


As motivações são múltiplas, ou mais ou menos justas. É certo que o ofertório nos questiona a observar a qualidade de nosso culto, que, como vimos, é a resposta da cultura que temos. O que buscamos na Eucaristia e o que nela, de fato, encontramos? Se não se forma a cultura cristã, como o Mistério pode ser buscado? A Eucaristia pode ser um índice de crescimento e de adesão a esse Mistério.

Pe. Mauro Negro, OSJ

Biblista. PUC São Paulo. Faculdade São Bento, São Paulo
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