Era uma vez um menino lá de…

set 28, 2022Assinante, Especial, Outubro 2022, Revistas1 Comentário

Andriel e sua fabulosa história de contar e encantar com suas novas páginas.

O filho de dona Elenice traçou caminhos que nem em seus sonhos podia prever. Natural de Presidente Alves, no interior paulista, Andriel Fagundes, de 32 anos, é um artista político provocador de sorrisos (E explico por quê). É vereador em sua cidade, porque decidiu completar lacunas no acesso à Educação. Lacunas que ele mesmo preenche com uma política diária entremeada de cor e de personagens. Andriel é um contador de histórias.

As histórias, aliás, sempre foram suas companheiras. Desde pequeno, o neto de dona Margarida, de 83 anos, e seu Joaquim (já falecido), gostava de ouvir e de contar histórias que criava a partir das imagens dos livros que ganhava da mãe, esta sim, sua grande heroína.
Aos dois anos de idade, Andriel assistiu à separação de seus pais e distanciou-se do genitor. Assim, sua mãe assumiu ambos os papéis na educação do menino. Como buscava mais conhecimento e oportunidades de crescimento profissional, Helenice precisou trabalhar em outra cidade, deixando o filho aos cuidados dos avôs.

FotoJoao01Out22RTal distanciamento era temporário, mas o menino se apegou à rotina perto dos avós (eu entendo Andriel, e quem tem colo da “vó” por aí certamente entende também). “Passou um ano e não quis mais voltar. Fiquei por lá até os dezoito anos de idade”, contou Andriel. O “lá” é Pitangueiras, cidade com, atualmente, cerca de 40 mil habitantes.

Não bastassem os desafios da família, o pai de Andriel impôs mais um: passou a reivindicar a guarda do menino. O detalhe, e que parece ser sintoma de uma paternidade machista e ultrapassada, é que ele queria tirar a guarda de Andriel da mãe para deixá-lo sob os cuidados de sua irmã, tia do garoto. Naquela ocasião, o menino tinha seis anos. “Ele tentou me tirar da mãe, e o juiz perguntou para ele: ‘Você vai cuidar do seu filho?’ E ele disse: ‘Não, vai ser minha irmã’. Acredita?” Dessa forma, a guarda de Andriel seguiu com dona Helenice.

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O convívio com os avôs era feliz, mas não pôde estimular a alfabetização da criança, já que eles eram analfabetos. “Não conheciam nem as letras A, B, C. Minha vó era analfabeta e o vô também. Só que minha mãe sempre me presenteou com livros repletos de ilustrações e eu ficava olhando para eles, mesmo sem saber ler, e já criava histórias em minha cabeça”, conta, aos risos, um Andriel adulto.

Foi só perto dos nove anos de idade, na 3a Série, que o menino começou a ler de fato, graças ao carinho da professora Landinha, que se dedicou por meio de seu jeito dado à “leitura” de imagens e ilustrações que via nos livros disponibilizados pela mãe. “Eu era muito visual. Pegava as imagens do livro e criava uma história, então ali eu já contava histórias. Mas só consegui ser alfabetizado mesmo com a professora Landinha”. Esses livros iam para todo canto com Andriel. Até parecia que o menino carregava um pedaço de dona Helenice. Eram 23 volumes, e todos estão guardados até os dias de hoje.

Escola da vida

Atualmente, Andriel é conhecido por ser “João, um contador de histórias”, e por se dedicar para que nenhuma outra criança deixe de ter a experiência da leitura desde bem pequenino(a). Ele faz isso estimulando o sorriso e a curiosidade da criançada por meio da contação de histórias.
O gosto por essa arte nasceu quando ele estava assistindo a um espetáculo. Ali sentiu que tinha nascido também para contar e fazer rir. Assim começou a brincar de contar e a escrever essas histórias. Com o tempo, percebeu que escrevia textos diferentes, com linguagem teatral. Por isso, ingressou em um grupo de teatro para aprender a criar roteiros, mas ele se desfez (os leitores sabem que as histórias reais nem sempre são felizes, não é?).

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Andriel Fagundes, Ribeiro Photography

Então o jovem Andriel começou a fazer teatro na rua, até que lhe foi oferecido um espaço para divulgar sua arte. Nesse local, posteriormente, as crianças começaram a chegar para brincar com ele e nunca mais pararam de interagir. Participou de uma oficina cultural de um programa do Estado de São Paulo que enviava profissionais para as cidades do interior paulista, em parceria com municípios interessados, com o objetivo de qualificar, fomentar e descentralizar a produção cultural.

Isso descentralizou e ampliou o horizonte de Andriel, que naquela ocasião já escrevia dramaturgia e experimentava diversas etapas da elaboração de uma peça teatral. Ele criava figurino, cenário, dirigia a si mesmo e seus atores e buscava patrocinadores para custear os projetos.

Mas ele queria mais: ampliar seus conhecimentos, e cursar uma graduação estavam em seus planos. Sem dinheiro, como poderia estudar Artes Cênicas? “Minha família achava uma bobagem…” Mas sua mãe (sempre a mãe) apoiou-o, ajudando-o a custear parte da mensalidade. Em 2007, o boleto da Universidade Sagrado Coração (Unisagrado), em Bauru (SP), girava em torno de mil reais. Então, com o auxílio da mãe e uma bolsa do Estado, por meio do Programa Bolsa Família, ele seguiu com seus estudos na graduação, até se formar. Saiu ator, diretor e professor de Artes.

Formado com A princesa que tinha piolho

A primeira história que escreveu e compartilhou de fato foi A princesa que tinha piolho, inspirada em um conto de Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), folclorista, historiador, professor e jornalista brasileiro, considerado um dos mais importantes pesquisadores das manifestações culturais brasileiras. Diferentemente de Andriel, Cascudo foi uma criança precoce e, aos seis anos, já sabia ler. Mas há similaridades entre ambos: a paixão pelas histórias e pela contação.

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Contação de histórias em Arealva (SP), Ribeiro Photography

Para compartilhar suas histórias e, admite, conseguir um dinheirinho, em 2014, passou a oferecer contação para as escolas da região. Começou com o Projeto Mês a Mês na História. Ele apresentava histórias cujos assuntos dialogavam com o conteúdo programático que os professores estavam trabalhando com alunos (Os leitores estão acompanhando que, nessa época, Andriel também era professor e formado em Ludoterapia).
Buscou o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para aprender a valorizar adequadamente seu produto, nas suas contações, e assim viu o personagem João crescer com turnês pelas cidades do interior paulista. Ele lembra que o primeiro figurino foi montado com cola quente. Hoje, os figurinos são elaborados por costureiras, sendo verdadeiras obras de arte que enchem os olhos da criançada e dos adultos de tanta beleza.

“Para se contar história, não precisa estar caracterizado, ao contrário, mas esse João existe por causa da minha infância, e eu sempre gostei das coisas encantadas. O personagem veio para encantar e deu muito certo. Alguns contadores são contra tamanha caracterização”, explica Andriel, criador do personagem João.

Contação para ouvintes de todas as idades

João conta histórias para diversos públicos, desde bebês até idosos. “Vou até centros de convivência do idoso e eles me recebem muito bem. Já quando vou a uma escola, as crianças ficam eufóricas. Hoje, ao contar história, parece que estou entregando um pouco daquilo que me faltou na infância: a afetividade”.

Além de completar mais essa lacuna, de afeto, Andriel observa que a contação de histórias tem possibilitado denúncias importantes, já que crianças desabafam com o personagem. “Por meio da contação de histórias, descobrimos um abuso sexual. Trata-se de um caso de Avanhandava (SP). Observamos também o caso de uma criança que só lia à noite, escondida, quando todo mundo da casa estava dormindo, porque se a vissem lendo ou estudando batiam nela”.

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E Andriel continua. “Vemos crianças que nunca entraram em uma biblioteca buscando livros após encontrar o João. As professoras relatam isso quando retorno às escolas […]. São muitas as experiências, com crianças autistas também. Lá em Iacanga [cidade com cerca de 12 mil habitantes no centro-oeste paulista], sempre ganho um abraço. Em Pirajuí [também do centro-oeste paulista, com pouco mais de 25 mil habitantes], sou entrevistado [por uma criança] ao final da minha contação…”

O fato de João, ou melhor, Andriel, ser negro também chama a atenção das crianças. A representatividade mostra sua importância, seu valor. “Por ser negro, eu percebo como é muito importante também essa representação. De minha 1a Série até a graduação, tive apenas dois professores negros. Eu nunca percebi a questão de cores, tanto que fui ter noção de preconceito na fase adulta. Agora, noto os momentos de racismo que vivi, pois era muito ingênuo. Hoje mesmo, após a contação, três crianças negras vieram me abraçar, então é muito bacana essa identificação”.

Um João, diversas possibilidades

Para alcançar seus diferentes públicos e incentivar professores a acreditarem na arte como ferramenta transformadora, como foi em sua vida, Andriel criou outras possibilidades de contação de histórias. Hoje, João tem um livro publicado, Sabiá não quer cantar, ilustrado por Pedro Serra, e outro “no forno”.

Ele tem uma banda, a Fa Fé Fígaro, oferece formação para professores, segue com sua contação de histórias nas escolas, com o Projeto Autor na Escola, ao levar seu livro para as crianças, e em breve deve ocupar praças pelo País com o Histórias na Praça, um caminhão que vira teatro a céu aberto. “Isso surgiu porque eu estive em uma feira dos livros e vi um pai rindo horrores com a criança. Quero alcançar toda a família, para que a criança se divirta junto”.

Assim, costurando suas histórias com as de outras crianças e famílias, João e Andriel seguem feito o sabiá (aquele personagem do livro), oferecendo empatia, sorrisos e muito trabalho em prol da Arte e da Educação. “A Arte, quando envolvida com a Educação, é uma ferramenta muito poderosa.

A história tem de ser um lugar envolvente. Há várias formas de ensinar. A pandemia mostrou isso. Precisamos ser criativos e ativos”.
Agora em 2022, às vésperas das Eleições, o contador de histórias e vereador falou do desafio da Educação em nosso país. “Percebi a dificuldade dos municípios em falar de Educação. A gente só tapa buraco. Estou fazendo política pela educação das crianças. Todas as minhas histórias trazem um empoderamento”.

O jeito, então, é seguir contando as histórias, para que crianças e famílias sejam capazes de escrever novas páginas. Com cores e sorrisos. Esta, este mês, foi a minha.

Foto Reportagem JoaoContaHistorias 05Out22R

Autor

  • Karla Maria

    Jornalista, autora dos livros Mulheres extraordinárias (2017); Irmã Dulce: a santa brasileira que fez dos pobres sua vida (2019) e O peso do jumbo: histórias de uma repórter de dentro e fora do cárcere (2019), publicados pela Paulus Editora.

1 Comentário

  1. clemoco48

    Linda e comovente a reportagem de um herói, que superou os desafios e faz a alegria das crianças, que Deus o abençoe e lhe dê muitas Graças!

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