Uma música tradicional já nos diz tudo: “Onde o amor e a caridade, Deus aí está!”1. Aprendemos a reconhecer a presença e a voz de Deus onde há amor e comunhão. O contrário é válido: onde não se permite amar, constatam-se a ausência d’Ele e o surdo clamor do desejo por plenitude. O mais evidente lugar da presença de Deus é o coração humano em cada pessoa e comunidade. No mais íntimo do humano, Ele mora! Assim o invocava Santo Agostinho de Hipona (354-430), do fundo de sua alma: “Deus, de quem não se pode separar sem cair, a quem não se retorna, sem se reerguer; permanecer em ti é ter sólido apoio, afastar-se de ti é morrer, habitar em ti é viver… Deus, a quem ninguém perde, a não ser enganado, que ninguém procura, sem prévio chamado, a quem ninguém encontra, sem primeiro ter sido purificado; Deus, a quem a fé nos impele, a esperança nos orienta, e com quem a caridade nos une. Deus, por quem triunfamos do inimigo é a Ti que eu dirijo a minha prece! Deus, graças a quem, o que há de melhor em nós não está subordinado ao pior. Somente Tu, ó meu Deus, és o objeto de tudo o que acabo de dizer. Vem em meu auxílio. Escuta-me! Escuta-me! Escuta-me!”2
Um teólogo medieval espanhol, Melchior Cano (1509-1560), O.P. frade dominicano, professor em Valladolid, Alcalá e Salamanca, na Espanha, escreveu em vida uma obra somente publicada em 1563, que se tornou referencial para todo o sempre na Igreja e nas faculdades de teologia: De locis theologicis (‘Os lugares teológicos’). Nela, ele, que foi assessor no Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563), e, ao final da vida, bispo de Tenerife, nas Canárias, apresenta de forma didática os lugares, sedes ou casas onde Deus se revela e se deixa conhecer. É como um mapa ou álbum de fotografias, ou melhor, um método que busca ensinar aos estudantes de Teologia onde encontrar os argumentos de autoridade em Teologia e aprofundar sua fé e ação pastoral. Sabemos, pela fé recebida da Igreja e por experiência pessoal, que Deus se deixa encontrar em todos os momentos da vida e se revela primeiro antes que tomemos a iniciativa. Ele almeja o coração humano desde a origem do mundo, tanto quanto o nosso coração tem sede de Deus. Assim aprendemos das Escrituras Sagradas, em que se lê, de forma simples e poética: “Nós o amamos, porque Ele nos amou primeiro” (1Jo 4,19).
Emocionados, lemos o poema de Santo Agostinho: “Tarde te amei, beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! E eis que estavas dentro de mim e eu fora, e aí te procurava, e eu, sem beleza, precipitava-me nessas coisas belas que tu fizeste. Tu estavas comigo e eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti aquelas coisas que não seriam, se em ti não fossem. Chamaste, e clamaste, e rompeste a minha surdez; brilhaste, cintilaste, e afastaste a minha cegueira; exalaste o teu perfume, e eu respirei e suspiro por ti; saboreei-te, e tenho fome e sede; tocaste-me, e inflamei-me no desejo da tua paz”3.
Isso confirma que Deus se revela por amor em firme decisão de Sua infinita vontade de criar, salvar e cuidar de toda a criação e de todas as criaturas. Portanto, é correto dizer que, ao olhar de quem tem fé, tudo fala de Deus, tudo revela Deus, tudo nos apresenta os vestígios da Trindade Santa espalhados por todo o Universo criado4.
Ainda que possamos também afirmar, como dizem os profetas, que Deus se esconde para que a surpresa do encontro possa celebrar uma aliança de amor e não a domesticação de um deus falso e apequenado. Assim diz o profeta Isaías: “Verdadeiramente tu és o Deus escondido, o Deus de Israel, o Salvador” (Is 45,15). Assim vivemos no lusco-fusco da fé. Temos momentos de revelação e momentos de escuridão em nossas fragilidades e medos. Reconhecemos a presença de Deus e, na falta de fé e esperança, mergulhamos na angústia da ausência do Pai celestial. Para ampliar a nossa percepção do Deus vivo e verdadeiro, que se revela e pede nosso amor, afirmamos, seguindo o teólogo espanhol, que há onze lugares de presença e revelação. Cada pessoa pode viver esse desvelamento divino, cada qual a seu modo e processo vital. Deus nos quer unidos, mas nos ama de forma única.
Lugares teológicos
O primeiro e mais transparente lugar divino, também chamado de testemunho primeiro de Deus, é a Sagrada Escritura, também conhecida como Bíblia Sagrada. Ocupa lugar “absolutamente à parte e único e junto dela, a Tradição apostólica, pois impossível dissociar Escritura da Tradição ou vice-versa”5. Esse lugar é original e fundamental, pois revela a experiência histórica do Povo de Deus que caminha animado pelo Sopro do Espírito de Deus. A Palavra escrita anima a Palavra inscrita na vida das pessoas. O livro da Bíblia é como um roteiro de coragem para caminhar por nosso temporal livro da Vida.
Estes são os lugares secundários: o Senso dos fiéis, que incluem as Confissões ou Símbolos e Credos da Fé e a Santa Liturgia (o que se reza é o que se crê); o Magistério dos Bispos, quer ordinário, quer solene ou colegial; o Magistério dos Papas como bispos de Roma em seus pronunciamentos, documentos, encíclicas, constituições e sobretudo em sua missão de unidade na diversidade pastoral das igrejas; os Santos Padres, no que conhecemos como Patrística ou também Patrologia, desde os padres apostólicos até São Gregório Magno (590-604), no Ocidente, e São João Damasceno (675-749), no Oriente; e os teólogos, e, entre esses, sobretudo ler e ouvir os 37 doutores e doutoras da Igreja.
Esses lugares da presença de Deus estão ancorados na vivência histórica do mistério d’Ele nas vidas dos santos e das santas. Há também lugares e testemunhos alheios, que, pela graça divina, podem e devem ser perscrutadas no diálogo, na comunhão entre as culturas, religiões e na arte dos povos.
Há cinco lugares grávidos das sementes do Verbo Divino, quais sejam: as religiões não cristãs, em particular no que as une na compaixão, na obediência ao Deus Criador e em gestos de paz e justiça; as filosofias e as concepções de mundo, como obra-prima da incessante busca da verdade por pensadores e intelectuais de todos os matizes e correntes; as Ciências Naturais e Humanas, pois a natureza está prenhe de mistérios e a alma humana deseja o infinito e a salvação; a história passada, especialmente a história dos povos bíblicos e os tempos da Igreja desde o ano 30 da Era Cristã até hoje, pois sabemos que não há duas histórias, mas uma única história de toda a humanidade, em seu caminhar conflitivo marcado por feridas e vitórias; e, por último, mas não menos importante, estão os sinais dos tempos.
O Documento Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo atual, elaborado no final do Concílio Vaticano II (1962-1965), proclamou: “[…] a Igreja tem o dever de perscrutar permanentemente os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de tal modo que possa responder, de forma adaptada a cada geração, às perenes interrogações das pessoas sobre o sentido da vida presente e futura e de sua mútua relação […]” (GS, n. 4).6
O papa Francisco (1936-), ao convidar as Igrejas para o Ano Jubilar de 2025, escreve que “para não cair na tentação de nos considerarmos subjugados pelo mal e pela violência, é necessário prestar atenção ao abundante bem que existe no mundo. Os sinais dos tempos – que contem o anelo do coração humano, necessitado da presença salvífica de Deus – pedem para ser transformados em sinais de esperança”7.
Deus quis se manifestar e se comunicar como comunhão de pessoas para todos os seres do universo, com particular devoção e conexão com os seres humanos, neste pequeno planeta azul chamado Terra. A Palavra de Deus é essa força divina que nos insufla o vento que faz viver e nos salva para a eternidade.
O primeiro e mais transparente lugar divino, também chamado de testemunho primeiro de Deus, é a Sagrada Escritura, também conhecida como Bíblia Sagrada
Teofanias, cristofanias e epifanias
Os antigos chamavam essa presença amorosa de Teofanias, transcrevendo-a como visões dos céus, como visita de anjos ao patriarca e pai de fé, Abraão (cf. Gn 18,1-33); na brisa suave e não na tempestade (cf. 1Rs 19,12); na sarça que queima e não se consome (cf. Ex 3,2); na luta corporal entre Jacó e o anjo de Deus (cf. Gn 32,24-30); em uma coluna na nuvem, chamando Samuel pelo nome durante a noite (cf. 1Sm 3,1-14); em uma visão complexa do Trono de Deus apresentado ao profeta Ezequiel (cf. Ez 1,1-28); em conversa pessoal com Jonas repreendido por Deus por não ter compaixão dos ninivitas, que valiam para ele menos que a sombra de um arbusto (cf. Jn 4,9-11). Por último, e de modo radical e forte, Deus conversa com Moisés face a face (cf. Ex 33,11).
No Novo Testamento, temos a presença de Deus experimentada nas cristofanias, narradas pelos quatro Evangelhos, nas Epístolas e nos Atos dos Apóstolos, que podemos classificar como fundadoras e catequéticas. Entre elas, podemos citar: a voz vinda dos céus no Batismo de Jesus (cf. Lc 3,21-22); na Transfiguração, no alto da Montanha (cf. Lc 9,28-36); os sete sinais ou milagres narrados no Evangelho segundo São João desvelam a presença de Deus na pessoa de Jesus, desde as Bodas de Caná até a ressurreição de Lázaro; o nascimento de Jesus e o canto de Maria como expressão do Verbo encarnado no seio da Virgem (cf. Lc 1,26-38), e certamente a experiência pascal, narrada pela Igreja Primitiva no que ficará conhecido como dezoito aparições de Jesus Ressuscitado, entre as quais: o encontro no Jardim com Maria de Magdala (cf. Mt 28,9); na estrada, caminhando com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-15), aos dez apóstolos, estando ausente Tomé (cf. Jo 11,16); a Pedro, a Tomé com os demais (cf. Jo 20,26-31); a sete apóstolos pedindo peixe para comer (cf. Jo 21,1-14); a mais de quinhentos irmãos (cf. 1Cor 15,6); a Tiago, a Estevão e a Paulo em vários momentos… Assim foi narrado no livro dos Atos dos Apóstolos: “E disse o Senhor em visão a Paulo: ‘Não temas, mas fala, e não te cales; porque eu sou contigo, e ninguém lançará mão de ti para te fazer mal, pois tenho muito povo nesta cidade’” (At 18,9-10).
>Hoje há momentos epifânicos em que sentimos Deus, experimentamos Seu Amor, somos inspirados pelo consolo do Espírito Santo e confirmamos a fé proclamando Seu louvor. Não há lugar onde Ele não se revele e manifeste Seu Amor na pessoa de Seu Filho Salvador. Quem tem olhos para ver, que veja, ouvidos para ouvir, que ouça, coração para acolher, que O receba na graça e na paz. Certamente o corpo dos pobres revela o Corpo de Cristo. A partilha do pão emerge como ágape fraterno e Eucaristia de Deus feito pão a ser comido e transfigurado, pois sabemos da revelação cristã que: “Se alguém diz: eu amo a Deus, e odeia o irmão, é mentiroso. Pois quem não ama a seu irmão, ao qual viu, como pode amar a Deus, a quem não viu” (1Jo 4,20). Este é o maior mandamento: quem ama a Deus, ame também a seu irmão!
O papa Francisco insiste frequentemente que Deus entra em nossa vida pelo caminho comum. Fala em santidade do Deus que caminha pelas ruas da cidade, na normalidade profissional, nas cozinhas, nas escolas e no transporte público. Não é preciso pensar em coisas extraordinárias, majestáticas, mas viver o pequeno caminho d’Ele, na vida simples e serena. O pontífice descreve o pensamento de Santa Teresa de Lisieux (1873-1897) que fala da normalidade ordinária da vida da Mãe de Jesus: “[…] Sei que em Nazaré, Mãe cheia de graça, vivestes pobremente, não querendo nada mais. Nem arroubamentos, nem milagres, nem êxtases, embelezaram a tua vida, ó Rainha dos Eleitos!… O número dos pequenos é bem grande na terra. Eles podem sem receio erguer os olhos para ti. É pela via comum, incomparável Mãe que te apraz caminhar, guiando-os para o Céu” (CLC, n. 36)8.
Notas
1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kbIbONF5gxk. Acesso em: jul. 2024.
2 AGOSTINHO, Santo. Solilóquios. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 26.30.
3 AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 285. Livro X.
4 AGOSTINHO, Santo. Vestigia Trinitatis: De Trinitate. Prior Velho: Paulinas, 2007. cap. 46, p. 431. Livro XV.
5 BOFF, Clodovis, O.S.M. Teoria do método teológico. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 201.
6 PAULO VI, Papa. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo Atual. Roma, 7 dez. 1965. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: jul. 2024.
7 FRANCISCO, Papa. Bula Spes non Confundit. Brasília, DF: Edições CNBB, 2024. p. 16.
8 FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica C´est la Confiance: sobre a confiança
no amor misericordioso de Deus. Roma, 15 out. 2023. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/20231015-santateresa-delbambinogesu.html. Acesso em: jul. 2024.
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