Rutílio Grande “Por ter defendido os irmãos”1

fev 28, 2024Assinante, Março 2024, Revistas, Testemunhas do Reino0 Comentários

É mês de março, ocasião de celebrar São José. As comunidades que o têm como padroeiro vivenciam novenas, tríduos, devoções próprias, para honrar o pai terreno de Jesus e guardião da Bem-Aventurada Virgem Maria, patrono e protetor da Igreja Católica. José de Nazaré, carpinteiro, era conhecido como homem justo (cf. Mt 1,19). Então, uma testemunha do Reino apresenta-se para nós em sintonia com São José, com a justiça conforme o coração de Jesus, em sintonia com uma paternidade cuidadosa, com uma atitude de guardião diante dos que sofrem e são ameaçados. Aqui, nós nos referimos ao Beato Padre Rutílio Grande Garcia2. É diante dele, de sua vida e ação pastoral, de seu modo de professar a fé católica, que nos colocamos reverentes e desejosos de (re)conhecê-lo e imitá-lo no amor a Deus e na defesa dos irmãos e irmãs sofridas.

“Por causa da Tua palavra”

Em Quito (Equador), Beato Padre Rutílio Grande Garcia continua a sua formação como jesuíta estudando Humanidades no “Colegio Loyola”e obtendo o grau de Bacharel em Humanidades Clássicas, 25 de março de 1950, arquivo

Em Quito (Equador), Beato Padre Rutílio Grande Garcia continua a sua formação como jesuíta estudando Humanidades no “Colegio Loyola”e obtendo o grau de Bacharel em Humanidades Clássicas, 25 de março de 1950, arquivo

Salvador Grande era um homem bem relacionado que comerciava mercadorias, transportadas por carro de boi em um amplo território. Por muitos anos, foi administrador do então povoado de El Paisnal, no município de Aguilares, Departamento de San Salvador, em El Salvador, na América Central. Sua esposa, Cristina Garcia, em 5 de julho de 1928, ofertou a luz do mundo ao caçula, que recebeu na pia batismal o nome de Rutílio Grande Garcia. Aos quatro anos, o pequeno passou pela tristeza de se tornar órfão de mãe. Nos dez anos seguintes, foi cuidado pela avó materna, que lhe infundiu vivamente a fé católica e o desejo de ser padre, tanto que o menino gostava de brincar com os amigos de “rezar missa”. Ainda criança, conheceu o então Arcebispo de San Salvador, dom Luis Chávez y González (1901-1987), em uma visita pastoral que o prelado fizera nas comunidades da região. Houve uma identificação imediata entre o tímido garoto da roça e o arcebispo da capital do país, iniciando uma correspondência constante e comprometida entre ambos, que culminou com o pedido para entrar no seminário. Aos catorze anos, Tilo (como o menino era afetuosamente conhecido) ingressou no Seminário São José da Arquidiocese, administrado por padres da Companhia de Jesus; assim, além da influência viva da avó e de dom Luis Chávez, foi influenciado pelos formadores jesuítas e pela espiritualidade inaciana (de Santo Inácio de Loyola [1491-1556], fundador da Companhia de Jesus).

Tilo, como costuma acontecer com os jesuítas, vivenciou um longo percurso formativo que passou por San Salvador, Los Chorros (Venezuela), Quito (Equador), Cidade do Panamá (Panamá), Bilbao (País Basco), Oña (Espanha)… onde foi ordenado sacerdote em julho de 1959. Viveu o percurso em constante tristeza, deprimido, pois, repleto de escrúpulos, não se achava digno de ser padre da Igreja. Seus superiores, sempre persuasivos para que continuasse firme no ministério abraçado, transferiram-no de El Salvador a Europa mais de uma vez, no intuito de cuidar do neossacerdote. Um período de estudos no Instituto Catequético Lumen Vitae, em Bruxelas, na Bélgica, foi aos poucos convertendo e libertando aquele coração tão rigorista, exageradamente exigente consigo mesmo, para ser um padre perfeito. Eram os anos do Concílio Vaticano II (1962-1965), que, pela graça do Espírito Santo de Deus, convertia a Igreja, enquanto padre Rutílio vivia sua conversão pessoal em sintonia com o Concílio. Por fim, libertado, escreveu ao superior sobre o sacerdócio que assumira: “Prometo não voltar a ser um perfeccionista. Aprenderei a nadar, nadando. Deponho toda a minha confiança em Jesus; ele é a única coisa que permanece”3.

Beato Padre Rutílio Grande Garcia em sua Ordenação Sacerdotal, 30 de julho de 1959, arquivo

Beato Padre Rutílio Grande Garcia em sua Ordenação Sacerdotal, 30 de julho de 1959, arquivo

“Por causa da libertação”

Beato Padre Rutílio Grande Garcia, mestre de cerimónias na Ordenação Episcopal de São Óscar Romero, 21 de junho de 1970, arquivo

Beato Padre Rutílio Grande Garcia, mestre de cerimónias na Ordenação Episcopal de São Óscar Romero, 21 de junho de 1970, arquivo

Em 1965, o menino de El Paisnal retornou para sua pátria e assumiu como professor de Teologia Pastoral, coordenando a ação social dos seminaristas no Seminário de San Salvador. Orientados por padre Tilo, era nos bairros periféricos, sem saneamento e de uma miséria escandalosa, que os seminaristas (muitos deles oriundos de famílias ricas e com uma visão elitista do sacerdócio) iam pisar a mesma cotidiana e fétida lama pisada pelo sofrido povo salvadorenho. Em um país em que grassavam os males do latifúndio e da concentração de renda, dominado por um reduzido número de famílias abastadas que mantinham o status quo das oligarquias amparadas pelos militares para que tudo permanecesse igual, padre Rutílio passou a ser um estorvo, incomodando em especial bispos e irmãos de sacerdócio. Seus sermões comprometidos com os lascados, seu magistério e sua ação pastoral fizeram que perdesse a cátedra como professor do Seminário.

Em 1972, foi nomeado pároco da Igreja do Senhor das Misericórdias de Aguilares, que compreendia também seu povoado natal. Na paróquia, estabeleceu um plano pastoral em sintonia com as orientações do Concílio Vaticano II e da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada em 1968, na cidade colombiana de Medellín, ou seja, ação pastoral preocupada com a justiça, a paz, a opção pelos pobres; avessa às ideologias, quer liberais, quer marxistas; ação pastoral devotada ao cuidado e defesa da dignidade da pessoa humana e ao Bem Comum. Assim, promoveu as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), formando delegados da Palavra de Deus, lideranças que ajudavam o povo a viver sobre o trilho da fé e da vida, da Palavra e da realidade social, em encontros bíblicos caracterizados por ardente devoção popular, oração, devoção aos padroeiros. Os camponeses injustiçados pelos latifundiários, iluminados por uma fé cristã encarnada, conscientizaram-se de sua condição – de que não era vontade de Deus, de que não era natural a miséria em que viviam. Perceberam que sua existência indigna e miserável era fruto das estruturas injustas da sociedade. Porém, como diria o cantor, compositor e poeta Zé Geraldo (1944-): “[…] Se chega alguém querendo consertar/ Vem logo a ordem de cima/ Pega esse idiota e enterra […]”4. Mais dia, menos dia, a ordem viria.

Manuel Solórzano, Beato Padre Rutílio Grande Garcia e Nelson Rutílio Lemus, EDH / Jessica Orellana

Manuel Solórzano, Beato Padre Rutílio Grande Garcia e Nelson Rutílio Lemus, EDH / Jessica Orellana

“Por causa do Teu Evangelho” TestReinoRetratoMolduraMar24

Não se pode citar padre Rutílio Grande sem que se mencione Santo Óscar Romero (1917-1980)5. Ambos se conheceram no seminário, em 1967. Tornaram-se amigos, tanto que o pároco de Aguilares foi convidado para ser o cerimoniário na missa de consagração episcopal de dom Romero. Sempre recebeu apoio do novo arcebispo quando este sucedeu dom Luis Chávez. Dom Romero possuía uma visão da realidade salvadorenha um tanto distorcida – não acreditava que o governo militarizado e as oligarquias faziam a injustiça ser gerada. De algum modo, achava que as leis salvadorenhas funcionavam e protegiam as vítimas de crimes. Dia a dia, pouco a pouco, ele foi percebendo que não era bem assim, que os camponeses e os oprimidos, de um modo geral, não eram efetivamente protegidos de tantas vilanias que sofriam. Viria a gota d’água.
A perseguição aos padres que assumiam a mesma postura de padre Tilo só se intensificava. Tornou-se plataforma de governo expulsar sacerdotes estrangeiros de qualquer congregação e extirpar a Companhia de Jesus de El Salvador; a cantilena de que eram comunistas e infiltrados marxistas na Igreja era martelada nos jornais das oligarquias. Na ocasião, padre Mário Bernal Londoño (1921-2003), colombiano, pároco no município de Apopa, foi sequestrado, torturado e expulso do país por sua ação pastoral.

Padre Rutílio e outros sacerdotes acorreram a Apopa para celebrar uma missa em desagravo da injusta expulsão. A homília coube a padre Tilo que, conciliando com as leituras litúrgicas do dia, denunciou mais essa injustiça de forma contundente, pondo o dedo na ferida, apontando os responsáveis. Veio, então, a ordem de cima.

“Mataram mais um irmão”

Em 12 de março de 1977, padre Tilo saiu no jipe da Paróquia de Aguilares para celebrar a novena do padroeiro da Igreja de El Paisnal, São José, o pai terreno de Jesus e guardião da Bem-Aventurada Virgem Maria, patrono e protetor da Igreja Católica. No carro, estava acompanhado do leigo Manuel Solórzano (de 72 anos) e do adolescente Nelson Rutílio Lemus (de dezesseis anos). Na estrada poeirenta, ainda deram carona na carroceria para três crianças. Preparados para a emboscada, membros da temida Guarda Nacional cumpriram a ordem de eliminar o sacerdote comunista, que falava mal do governo e sublevava os camponeses em greves.

Na ocasião, padre Tilo foi alvejado com dezenove tiros, e Manuel e Nelson também foram assassinados. Os caronas foram instados duramente a desaparecer da frente dos guardas, que desceram dos morros para confirmar se realmente estavam mortos os que estavam na cabine. O primeiro milagre do mártir Rutílio Grande, no dizer do próprio papa Francisco (1936-), foi a definitiva conversão de dom Óscar Romero à causa dos empobrecidos e dos martirizados, pois ele percebeu a má vontade e a leniência do presidente salvadorenho ao exigir que tudo fosse apurado e os responsáveis punidos.

Cerimônia de beatificação em 22 de janeiro de 2022, na Plaza Las Américas, El Salvador, La Prensa Gráfica

Cerimônia de beatificação em 22 de janeiro de 2022, na Plaza Las Américas, El Salvador, La Prensa Gráfica

Em 22 de janeiro de 2022, padre Tilo e seus companheiros foram reconhecidos Beatos da Igreja Católica, em cerimônia realizada na Praça Divino Salvador do Mundo, em San Salvador. A memória litúrgica dos três é celebrada todo dia 12 de março. Que o Beato Padre Rutílio Grande e seus companheiros mártires intercedam para que sejamos fiéis até o fim ao Evangelho libertador de Cristo, que exige nossa coerência na defesa dos irmãos e irmãs injustiçados, espoliados, vilipendiados em suas consciências. É o mínimo que podemos fazer diante de sua memória e de seu martírio. Mártir por ódio à fé, em um país católico, ele pagou com a própria vida por ter defendido os irmãos.

Notas

1 Os subtítulos deste artigo foram inspirados na música “Mataram mais um irmão”, composta por padre Zezinho (1941-), SCJ, em 1987. Convidamos os leitores para audição em forma de oração em: https://www.youtube.com/watch?v=hx37YNZBLEI. Acesso em: jan. 2024.
2 O’MALLEY, Willian J. A voz do sangue: cinco mártires cristãos do nosso tempo. São Paulo: Loyola, 1984. p. 13-83.
• DE FOE, Robinson. Rutílio Grande: primer martir salvadoreño. San Salvador: Independently Published, 2021.
3 O’MALLEY, op. cit., p. 23.
4 Música “Milho aos pombos”, composta por Zé Geraldo em 1981. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_tzgk5YMioM. Acesso em: jan. 2024.
5 Para melhor contextualização desse conteúdo, convidamos os leitores a conferirem os seguintes artigos:
• BAPTISTA, José Ricardo. Óscar Romero: bispo dos pobres, mártir da fé. O Mensageiro de Santo Antônio. Santo André, maio 2015.
• BAPTISTA, José Ricardo. São Óscar Romero: pela dignidade humana e contra a ditadura. O Mensageiro de Santo Antônio. Santo André, nov. 2018.

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