Os Carceri – Espaço de contemplação e de vida fraterna (Parte 1)

ago 28, 2023Assinante, Encontro com a Espiritualidade Franciscana, Revistas, Setembro 20231 Comentário

Para os franciscanos e amigos de São Francisco de Assis (1182-1226), a palavra italiana carceri, plural de carcere, não é desconhecida. Todos já ouvimos falar desse espaço de oração, retirado de tudo. “Carceri é um vocábulo sinônimo de ‘segregação’; ‘encarcerar-se’, que, na linguagem do tempo, descreve a vida eremítica em seu aspecto exterior de ruptura com o mundo. Este não era o único lugar de vida eremítica nessa misteriosa montanha que espreita Assis: existiam outros carceri ou refúgios onde se vivia a vida de eremitério à maneira dos anacoretas. A vida contemplativa de Francisco e de seus seguidores se inscreve, pois, na tradição eremítica da montanha”1.

Em um espaço montanhoso, perto de Assis, e em muitos outros, São Francisco e seus companheiros costumavam recolher-se em contemplação e santo isolamento, por um tempo. Provavelmente, as “quaresmas” do santo eram feitas em tais espaços. O vocábulo alude à vida eremítica em seu aspecto exterior de ruptura com o mundo. Entendemos carceri como espaços de silêncio, distanciamento dos fatos cotidianos, tentativa de quebrar a rotina que a tudo penetra, transformando tudo no corriqueiro, no banal, naquilo que não nos diz mais nada porque foi feito sem alma. Os carceri são lugares de contemplação e, no caso franciscano, de vida fraterna.

Quando nos referimos a carceri, somos automaticamente conduzidos a pensar na Regra para os eremitérios, elaborada por São Francisco. Misturam-se as palavras e as realidades: lugares de intensa vida de oração, simplicidade, quase aspereza, mas de luminosidade. Somos informados que, até a metade do século XIII, a vida no local prosseguiu segundo o espírito e a forma do início. Os companheiros de São Francisco (freis Rufino, Leão, Masseo, Silvestre, Egídio, Bernardo), conservando os costumes contemplativos nos quais ele os tinha iniciado, continuaram a frequentar o lugar por iniciativa própria e com o consentimento dos superiores.

Foto MolduraSetembro23
A vida do Poverello foi marcada por um verdadeiro dilaceramento interior: sede de solidão e desejo de viver no meio das pessoas anunciando as “odoríferas Palavras do Senhor”. Essa oposição chegou a preocupá-lo a tal ponto que pediu orações a Santa Clara de Assis (1194-1253) e a frei Silvestre para saber o que escolher. Obteve como resposta que deveria viver em um constante “ir pelo mundo” e, ao mesmo tempo, recolher-se em lugares ermos e silenciosos para vivenciar intensos momentos de contemplação.

São Francisco inventou o eremitério, eremitério diferente, como lugar e tempo forte de oração e também como ocasião de “compenetração fraterna”. O eremitério, na concepção dele, possui uma dupla finalidade: criar as melhores disposições exteriores para a intimidade com Deus – silêncio, paz, contato com a natureza – e o encontro com os irmãos em um clima de abertura e simplicidade. Com isso, notamos, uma vez mais, seu interesse pela vida fraterna entre os que se expõem juntos diante do Senhor. Irmãos unidos em intensa vida de oração.
Eis o teor da Regra para os eremitérios, composta por São Francisco e vivida nos carceri:
“Aqueles que querem viver religiosamente nos eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro, dois deles sejam as mães e tenham
dois filhos, ou um pelo menos. Esses dois que são as mães levam a vida de Marta e os dois filhos levam a vida de Maria (cf. Lc 10,38-42), e tenham um claustro em que cada um tenha sua pequena cela para rezar e dormir. E rezem sempre as Completas do dia logo após o por do sol; e esforcem-se por manter o silêncio; e rezem suas horas canônicas; e levantem-se na hora das Matinas e procurem em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça (cf. Mt 6,33; Lc 12,31). E rezem a Prima na hora conveniente, e depois da Terça podem romper o silêncio e falar e dirigir-se às suas mães. E, quando lhes aprouver, podem pedir-lhes esmola, como os pobrezinhos, por amor do Senhor Deus. E depois, rezem Sexta e Noa; e rezem as Vésperas na hora conveniente. E não permitam que alguma pessoa entre no claustro onde moram nem comam aí. Os irmãos que são mães esforcem-se por ficar longe de qualquer pessoa; e por obediência a seu ministro guardem seus filhos de toda pessoa para que ninguém possa falar com eles. E os filhos não falem com ninguém, a não ser com suas mães e com seu ministro e custódio, com lhe aprouver visitá-los com a bênção do Senhor Deus. Os filhos, no entanto, assumam de vez em quando o ofício de mães em revezamento, pelo tempo como lhes parecer melhor estabelecer; e esforcem-se por observar com solicitude e empenho todas as referidas coisas”2.

O eremitério, na concepção dele, possui uma dupla finalidade:
criar as melhores disposições exteriores para a intimidade com Deus – silêncio, paz, contato com a natureza – e o encontro com os irmãos em um clima de abertura e simplicidade.

São Francico de Assis, séc. XVII, Jacopo Ligozzi

São Francico de Assis, séc. XVII, Jacopo Ligozzi

Considerações finais

No eremitério, São Francisco louvava a Deus pelas rochas, nas quais via vestígios de “Cristo”, verdadeira “pedra angular” do mundo. Louvava-O por todas as plantas enraizadas nos penhascos do monte, que traziam à sua mente as árvores de cruz. Louvava o Senhor pelo Irmão Vento, que, às vezes, soprava galhardamente pelo ar, ou nublado, ou sereno, e todo o tempo, que dava à montanha bendita a chuva e a neve. Louvava a Deus pelo canto das gentis cotovias e de outros pássaros, os quais convidava a bendizer e a agradecer ao Senhor.

 

Notas

1 DICIONÁRIO Franciscano. Tradução
de Frei Almir Guimarães, OFM, e Edinei da Rosa Candido. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 87.
2 Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/regra-para-os-eremiterios.html#gsc.tab=0. Acesso em:
ago. 2023.

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1 Comentário

  1. clemoco48

    Muito bom, os ensinamentos deste artigo!

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