O relativo e o irrenunciável na política e nas eleições

ago 31, 2022Igreja e Sociedade, Revistas, Setembro 20221 Comentário

Com a aproximação das Eleições 2022, as polarizações vão ficando mais contundentes, os ânimos mais exaltados e os discernimentos menos racionais. O bom católico procura critérios, com base em sua experiência religiosa, para se orientar em meio ao burburinho geral, mas muitas vezes só encontra posições partidárias que procuram instrumentalizar princípios cristãos. Como são leituras parciais, redutivas e facciosas, de um todo que é a doutrina social da Igreja, frequentemente parecem até opostas entre si. Quando isso acontece, é sinal de que nenhum dos lados está sendo fiel à totalidade do pensamento católico, pois a doutrina social – tendo uma visão integral – sempre saberá apontar tanto o que existe de mal quanto o que existe de bom nos opostos. Vejamos a seguir alguns exemplos que podem até ser bem polêmicos.


Não é cristã uma posição que critica os gastos insustentáveis do Estado e o assistencialismo populista do período eleitoral sem olhar a situação de vulnerabilidade social em que as recentes crises econômicas lançaram grande parte da população brasileira. Por outro lado, também não está plenamente de acordo com o pensamento cristão – que pede responsabilidade no uso dos recursos públicos – quem defende a opção pelos pobres, mas não se atenta aos limites financeiros objetivos do Estado e o uso eleitoreiro das políticas sociais. O ideal é um uso responsável dos recursos públicos, que dê prioridade ao atendimento dos mais necessitados, de modo a superar as situações de pobreza, mas evitando futuras crises financeiras do Estado que conduzirão a mais pobreza.


Outro exemplo: a defesa da vida é um princípio irrenunciável para os cristãos, mas uma simples condenação do aborto, sem a solidariedade efetiva às gestantes em dificuldade, também não seria cristã. O que se espera de nós, segundo um lema muito preciso do movimento pró-vida, é a solidariedade não apenas a uma vida, seja da mãe, seja da criança, mas às duas vidas.
Existem “princípios irrenunciáveis”, que devem orientar nosso discernimento e não podem ser relativizados em nome de supostos consensos. Contudo, as leituras ideológicas, redutivas e partidarizadas, frequentemente nos levam à inversão do que é irrenunciável e do que é relativo. Nós nos apegamos a disposições partidárias (como a devoção cega a certos líderes políticos e a suas propostas) e relativizamos o que deveria ser irrenunciável (como os princípios que surgem da caridade entendida como “amor social”).

 

Dois princípios irrenunciáveis

Em 2002, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política1, em que propunha a existência de “princípios irrenunciáveis” que deveriam orientar a conduta política dos católicos. O texto não trazia um elenco sistemático de princípios, apenas alguns exemplos que, na época, pareciam mais prementes. O combate à corrupção, por exemplo, é um princípio irrenunciável evidente, mas que não está listado no documento. A defesa da vida, que estava em pauta na maior parte dos países europeus na época, é amplamente citada, mas outros princípios também são citados, como a liberdade e a paz.
Dois princípios são particularmente úteis para nos orientar nos debates brasileiros recentes: a defesa da vida e a economia a serviço do bem comum (que podemos identificar com a opção preferencial pelos pobres, nos termos mais comuns na América Latina). Quando falamos em defesa da vida, precisamos ter em mente que não se trata apenas do combate ao aborto e à eutanásia, também se morre antes da hora por fome e por violência. A economia a serviço do bem comum, por sua vez, deve tomar o combate à pobreza como prioridade, mas integrando-a à defesa do meio ambiente e à verdadeira promoção humana.

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O desafio de ser integral

O maior problema para o justo entendimento desses princípios, contudo, é uma visão reduzida de sua aplicação, orientada por um falso “realismo político”. Muitos acreditam que chegar ao poder é a única forma de conseguir aquilo que almejamos. Para tanto, acreditam ser “realista” abdicar de certos ideais em nome de outros. Alguns, em nome da opção pelos pobres, deixam de lutar contra o aborto. Outros, em nome da defesa da vida, fecham os olhos à situação dos mais pobres.
Quando caímos nesses reducionismos, perdemos a unidade e a coerência interna do Magistério católico, permitindo a instrumentalização da doutrina social e dando razão às dúvidas de nossos irmãos. A postura justa é aquela de sempre buscar uma visão integral e unitária de todos esses princípios, orientada ao diálogo e à construção do bem comum.
Se nosso candidato ou grupo político trai algum desses princípios, nosso dever é alertá-lo e exortá-lo a uma adesão mais completa e integral a todos eles – mesmo que isso signifique uma perda política. Podemos chegar até ao ponto de deixar de darmos nosso apoio ao político. O que não podemos é fechar os olhos quando algum desses princípios é abandonado, com alegações como “o adversário faz pior” ou “temos de aceitar isso para defender aquilo”.

 

Onde é justo relativizar

O candidato ideal, perfeito tanto na teoria quanto na prática, não existe, por um motivo muito simples: todos eles são seres humanos limitados e sujeitos ao pecado – como nós mesmos, diga-se de passagem. Os partidos, como agremiações que fatalmente incluem pessoas diferentes, tampouco podem ser perfeitos. A história recente mostrou os limites e as decepções trazidas pelos partidos autodenominados “democracias cristãs”, que muitas vezes utilizavam o cristianismo de forma falsa e demagógica.


A partir de constatações dessa natureza, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI)2 esclarece: “[…] O cristão não pode encontrar um partido plenamente conforme as exigências éticas que nascem da fé e da pertença à Igreja: a sua adesão a uma corrente política não será jamais ideológica, mas sempre crítica, a fim de que o partido e o seu projeto político sejam estimulados a realizar formas sempre mais atentas a obter o verdadeiro bem comum, inclusive os fins espirituais do homem” (CDSI, n. 573), de tal forma que “[…] a adesão a um partido ou corrente política seja considerada uma decisão a título pessoal, legítima ao menos nos limites dos partidos e posições não incompatíveis com a fé e os valores cristãos” e “[…] a ninguém é permitido reivindicar exclusivamente, em favor do seu parecer, a autoridade da Igreja: os crentes devem antes procurar esclarecer-se mutuamente num diálogo sincero, guardando a caridade mútua e tendo, antes de mais, o cuidado do bem comum” (CDSI, n. 574).

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Em busca de políticas estáveis que construam o bem comum

A Igreja não colabora para o desenvolvimento da sociedade quando faz as pessoas tendencialmente à esquerda ficarem mais à esquerda, ou as pessoas tendencialmente à direita ficarem mais à direita. Quem trabalha nessa perspectiva são os militantes partidários que querem convencer a comunidade católica a votar em seus candidatos. A Igreja dá sua maior contribuição quando nos ajuda a reconhecermos os erros da posição à qual tendemos e os acertos da posição contrária. Quando assumimos essa postura, conseguimos caminhar com muito mais facilidade para consensos que levem ao bem comum. É a dinâmica política que brota imediatamente de práticas tradicionais dos católicos, como o exame de consciência, a correção fraterna e a busca do entendimento entre os irmãos.


O desenvolvimento da sociedade depende muito de boas políticas “de Estado”, que são mantidas independentemente do partido que está no poder. A militância partidária, contudo, frequentemente aposta em políticas “de governo”, que só serão aplicadas enquanto seu partido está no poder e podem ser usadas para justificar o voto em seus candidatos. Para termos essas boas políticas de Estado, é fundamental a formação de um consenso que supere diferenças ideológicas e programáticas. É aqui que a contribuição da Igreja se torna mais evidente.

Condições para um diálogo político fecundo

Podemos pensar em sete comportamentos importantes para um diálogo que nos auxilie na construção do bem comum, mantendo-nos fiéis a nossos princípios fundamentais, principalmente no contexto das redes sociais:

1) Estar sempre pronto(a) a compreender as razões mais profundas das escolhas e posicionamentos do(a) outro(a). Ninguém quer o mal para si e para aqueles que ama. Toda opção inadequada é o resultado de uma cadeia de conclusões errôneas a partir de um desejo justo de bem. Quando compreendemos as razões pelas quais cada um(a) escolheu a determinada posição, torna-se muito mais fácil desenvolver o diálogo e chegar ao consenso.

2) Procurar não só os erros, mas principalmente os acertos que existem nos argumentos do(a) outro(a) – e aceitar aquilo em que ele(a) está certo, mesmo que parcialmente.

3) Nunca menosprezar o(a) outro(a) ou as pessoas que ele(a) segue. O menosprezo causa ressentimento e dificulta que tanto nós quanto os outros reconheçamos erros e acertos mútuos.

4) Evitar difundir fake news. Normalmente, uma busca rápida usando a ideia central com a palavra “fake” já direciona para um site confiável e especializado em checagem de informações. Os veículos de comunicação também podem errar, mas possuem um nome a zelar e mecanismos de apuração interna que diminuem o risco de informações descabidas.

5) Informar-se, procurando sempre o maior número de informações possíveis sobre a situação. É útil, em especial, consultar bons sites com posições e opiniões diferentes das nossas, para obter dados que normalmente não receberíamos.

6) Não propagar discursos de ódio e raiva. Diante dos descalabros atuais, os comunicadores sociais aprenderam que, quanto mais agressivos forem, mais seguidores conseguem, mas essa prática acaba por ofender os demais e impedir que façamos uma análise serena e racional dos acontecimentos.

7) Não ser insistente: se um grupo nas redes sociais solicita que não se enviem mensagens com temas políticos ou polêmicos, se um(a) amigo(a) ou parente se recusa a continuar um diálogo ou se torna agressivo(a), é melhor respeitar o contexto. O diálogo deve ser estabelecido entre os que estão dispostos a ele.

Mesmo seguindo essas regras, não é garantido que cheguemos a um consenso. Temos de reconhecer, antes mesmo de iniciar o diálogo, que nosso objetivo é compartilhar uma reflexão e não forçar uma conclusão. Há, no diálogo, um componente inevitável de impotência de ambas as partes, que deve ser aceito e respeitado. Depois, o jogo democrático levará à vitória política de uma posição ou outra, que também pode se revelar a pior com o tempo, mas não podemos querer obrigar o(a) outro(a) a pensar como nós.

 

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1 Comentário

  1. clemoco48

    Muito bom!

    Responder

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