O fim das jornadas terrenas de São Francisco e Santo Antônio

out 26, 2023Assinante, Caminhando Hoje com Sto. Antônio, Novembro 2023, Revistas0 Comentários

Diante da morte, frei Francisco exclamou: “Louvado sejas, meu Senhor!” Por sua vez, frei Antônio revelou, extasiado: “Estou vendo o meu Senhor!”

No dia 2 de novembro (que, neste ano, será uma quinta-feira), celebra-se o Dia de Finados (Comemoração dos Fiéis Falecidos). A experiência da morte é única para cada pessoa, rica ou pobre, santa ou menos santa. Por isso, queremos aqui investigar como foi e o que significou para São Francisco de Assis (1182-1226) e Santo Antônio de Lisboa e Pádua (1195-1231) esse momento derradeiro de suas jornadas terrenas, testemunhado por várias pessoas, como relatam seus biógrafos.

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Francisco (Giovanni di Pietro di Bernardone) teve uma juventude bastante tranquila do ponto de vista financeiro, pois seu pai, Pedro di Bernardone, com a esposa, Pica Bourlemont, era um rico comerciante de tecidos, cujas mercadorias ia buscar na França com longas e cansativas viagens; no entanto, os lucros de seu empreendimento se constituíram em um patrimônio razoável para o sustento da família. O casal teve outro filho, Ângelo, que, anos depois, iria desprezar o irmão mais velho, que “enlouquecera” e estava pagando o preço de sua loucura vivendo miseravelmente, desprezado e ridicularizado pelos habitantes de Assis.

O processo da conversão de Francisco foi lento e repleto de altos e baixos, entremeados de dúvidas, lutas íntimas, familiares e sociais. Relendo seu Testamento, ele sentiu que sua “conversão” havia sido um dom de Deus: “O Senhor deu a mim, frei Francisco, começar a fazer penitência”1, isto é, a converter-se a Deus sem resistências. Um dos fatos decisivos, segundo ele, foi seu encontro com o hanseniano: a ocasião foi uma reviravolta em sua vida, que já pendia na direção de Deus, mas que, a partir dali, transmitiu-lhe a certeza de que valia a pena deixar tudo e todos e seguir os passos de Jesus crucificado, representado nos hansenianos. Foi o “point of no return”, isto é, ‘um caminho sem volta’. Aquele beijo no hanseniano havia lhe escancarado um novo modo de viver, à semelhança de Jesus, no serviço aos irmãos e, entre eles, os mais discriminados da época.

Frei Francisco mesmo confessou seu conflito interno: o que antes considerava “pecado”: (antes, isso lhe parecia extremamente amargo), a partir daquele encontro, tornou-se “doçura da alma e do corpo!” Demorou um pouco ainda, mas abandonou a mentalidade mundana, epocal, de um mundo que só pensava nos bens materiais, no poder, no prestígio e em tantas outras coisas que insensivelmente vão amarrando as pessoas aos laços do próprio egoísmo, tornando-as cegas e surdas diante do chamado evangélico: “Vem e segue-me!” (Mt 19,21d).

Em setembro de 1226, aos 43 anos, frei Francisco pressentiu que “A Irmã Morte” estava se aproximando. Em vez de se apavorar, ainda teve força e consciência suficientes de chamá-la dessa forma tão natural à nossa natureza humana, física, corruptível em sua essência, mas em cuja base estavam o amor de Deus, o carinho do Criador e, por isso, “irmã’: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a Morte corporal, da qual homem algum pode escapar […]!” E o Poverello fazia questão de distinguir a “primeira” morte, a do pecado, essa, sim, de se temer, porque gera a morte da alma, do sentido de viver aberto ao Criador e às criaturas, fechando a pessoa, agora, nela mesma, em uma espécie de “suicídio”! Mas a morte “segunda”, física, que seja bem-vinda: ela é nossa “irmã” e nos conduz aos braços do Criador e Pai! É uma ponte que liga a criatura e o Criador, sem intermediações, no abraço eterno e terno do mor.

Voltemo-nos para frei Antônio (Fernando de Bulhões)! Seus últimos momentos são relatados na Legenda Assídua2 (também conhecida como ‘Vida Primeira’), escrita provavelmente por frei Aimone de Faversham (?-1244), confrade contemporâneo…
Em maio de 1231, frei Antônio estava exausto, doente, recém-chegado de uma malsucedida visita ao terrível Ezzelino III da Romano (1194-1259), senhor feudal e ditador de Verona. Ele mantinha em seus cárceres vários paduanos, em favor dos quais frei Antônio fora interceder (a pé) desde Pádua. No entanto, seu esforço foi em vão. O nobre permaneceu firme em sua decisão e não libertou nenhum dos prisioneiros. Mas ficou a marca registrada dessa visita: as palavras severas de frei Antônio para com Ezzelino tornaram-se, mais tarde, verdadeiras: o tirano teve uma morte cruel e violenta por parte dos inimigos.

Em seu sermão, frei Antônio escreveu:
“Alguém poderoso deste mundo infectado pelo veneno do ódio, com o hálito de sua boca, seca as ervas, isto é, mata os pobres, sufoca as árvores, isto é, os ricos, os comerciantes, os agiotas; destrói com o fogo os próprios familiares, inquina o próprio ar, quer dizer, a vida das pessoas religiosas. Seu assobio aterroriza até as serpentes, vale dizer, seus amigos e colegas, conhecedores de sua maldade. Quando sua raiva torna-se furiosa, todos fogem, colocando-se rapidamente em algum lugar seguro, nem que fosse um chiqueiro! Esse senhor, tão cruel, fora de si, deve ser habitado pelo demônio e somente é vencido pelos pobrezinhos em espírito que não têm medo porque nada têm a perder. As pessoas encharcadas pelo peso do dinheiro mandam aqueles pobres para o buraco das serpentes venenosas (basilisco), porque eles mesmos têm medo de ir e dizem: ‘Falem vocês com eles, porque nós não temos coragem!’”3

Na ocasião, frei Antônio pediu (e foi-lhe concedido) retirar-se por alguns dias ao pequeno convento/eremitério situado em Camposampiero, localizado a 18 quilômetros do centro de Pádua. Ali descansaria um pouco e voltaria às atividades. Porém, isso não ocorreu. Na manhã de 13 de junho de 1231 (um sexta-feira), não querendo ser um peso mais do que necessário aos frades do local, pediu-lhes que o levassem a seu Convento Santa Maria, Mãe do Senhor (‘Sancta Maria, Mater Dómini’), dentro das muralhas de Pádua. Dois frades acompanharam-no em um carro de boi forrado com leito de palha. Mas frei Antônio não entrou na cidade. Pouco antes, foi-lhe ao encontro o enfermeiro de seu convento; percebendo seu estado crítico, mandou que o levassem ao pequeno Convento de Arcella. E ali, cercado por três frades e por algumas irmãs clarissas de um convento vizinho (que logo acorreram para lá ao saberem de sua presença), frei Antônio rezou, orou com todos, respirando de forma ofegante, mas sempre bem consciente. Cantou o hino litúrgico de Nossa Senhora: ‘O Gloriosa Dómina’: “Ó Gloriosa Senhora/Além das estrelas exaltada/Deste o leite de teu seio/Àquele por quem foste criada!”

Em um derradeiro esforço, começou a olhar fixamente para a parede. Ao ser questionado por um dos frades: “O que o senhor está vendo, frei Antônio”?, ele respondeu: “Estou vendo o meu Senhor”! Aceitou receber a Unção dos Enfermos acompanhando todas as orações com muita devoção, ao final das quais começou a respirar com dificuldade, até cessar completamente. Tinha as mãos unidas sobre o peito e parecia adormecido. Mas havia partido para os braços do Pai. Ainda não tinha completado quarenta anos, mas vivera uma vida plena, dedicada a Deus e aos irmãos!
Paz e bem!

Notas

1 Disponível em: https://www.capuchinhos.org.br/texto/testamento-de-sao-francisco. Acesso em: out. 2023.
2 Disponível em: https://cnp-files.s3.amazonaws.com/uploads/gpctaesh1w9fgoi7wt99/II-Legenda-Assidua.pdf. Acesso em: out. 2023.
3 PÁDUA, Santo Antônio de. Sermões Dominicais e Festivos. Tradução de Frei Geraldo Monteiro. Padova: Ed. Messagero, 1979. p. 524. v. 1.

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