Neste artigo, vamos refletir sobre um trecho do Evangelho segundo São Marcos (cf. Mc 2,1-12). Trata-se de uma passagem que compõe a primeira parte do referido evangelho s (cf. Mc 1,14−3,16). A comunidade de Marcos recorda Jesus atuando em conflito com o sistema opressor romano e religioso da Palestina. Por estar ao lado dos enfermos, dos endemoniados, dos leprosos, da mulher, dos pecadores e dos transgressores da Lei, Ele se mantém em constante atrito com os escribas, aqueles que copiavam os textos bíblicos; com os fariseus, os que interpretavam as Leis; com os herodianos, os leais defensores do cruel Herodes Antipas, que não queria perder o poder que Roma lhe havia confiado na Palestina (qualquer semelhança com nossa realidade é mera coincidência?!).
Estando na cidade de Cafarnaum, Jesus atua na casa (cf. Mc 1,29; 2,1.15) e confronta, em dia de sábado, Seus adversários na sinagoga (cf. Mc 1,21; 3,1), lugar oficial do poder das autoridades judaicas.
Em Mc 1,14−3,16, Jesus começa Sua atuação na casa de Simão Pedro, fazendo que um paralítico se levante e ande com as próprias pernas (cf. Mc 2,1-12). Posteriormente, na sinagoga (cf. Mc 3,1-6), Ele pede que um homem com a mão atrofiada se levante e vá para o meio, lugar de destaque. No centro das narrativas, há três banquetes: um com os pecadores (cf. Mc 2,13-17), outro com os transgressores (cf. Mc 2,23-28) e, por fim, no centro do bloco narrativo, está o banquete nupcial (cf. Mc 2,18-22), no qual Jesus é o noivo presente na festa, quando então não é permitido jejuar.
Em Cafarnaum, o povo ouviu falar que Jesus estava em casa. Então, muitas pessoas se reuniram ali, de forma que não havia lugar nem próximo à porta; e Ele lhes pregava a Palavra. Jesus rompe a barreira da sinagoga, prega a Palavra e atrai multidões. Vieram quatro homens trazendo-lhe um paralítico, porém estavam impedidos de entrar no local por causa da multidão. Como alternativa, eles abrem o teto da casa para descer o homem com mobilidade reduzida. O número quatro simboliza o caráter universal da casa que se abre, por representar, no judaísmo, a universalidade.1
Além disso, quatro são os rios no jardim do Éden (cf. Gn 2,10), que se abre ao mundo. O paralítico é o personagem central (vv. 3.4.5.9.10), ainda que o que mais chama a atenção no texto são os quatro homens que o levam a Jesus. Ele está com um lado morto do corpo, por isso era marginalizado pela sociedade, pelos judeus.
Salta aos olhos o fato de Jesus não perguntar pela fé do paralítico e o destaque dado à atitude dos quatro homens que o conduzem, os quais representam a comunidade dos que creem. Interessante também é o fato de Ele agir como pai, ao chamar o intruso de filho. Com isso, passa a ter lugar na família de Jesus, unindo-se à comunidade. Jesus chama de filho somente os discípulos (cf. Mc 10,24).
Quando Jesus diz ao paralítico: “Filho, os seus pecados te são perdoados” (Mc 2,5), dá-se a integração do impuro na sociedade. A mutilação do corpo era considerada marca de uma culpa e, por isso, impureza. Somente os sacerdotes podiam possibilitar o perdão dos pecados mediante o complicado sistema do culto. Jesus, sendo Deus, rompe com esse sistema e estabelece o conflito.
Contrários ao paralítico que se levanta, toma sua cama e anda, os escribas e os fariseus permaneciam sentados, paralisados em suas crenças e acreditando que possuíam autoridade. Na verdade, eles são os verdadeiros paralíticos. A reação deles é de dizer que Jesus blasfema, pois quem poderia perdoar pecados seria somente Deus.
O olhar de Jesus é para os quatro, não para o paralítico. Foi pela fé deles que Jesus olhou para o paralítico que nada pediu. Para nós, restam alguns questionamentos: “Como está a nossa fé?”; “Somos capazes de carregar no colo os que necessitam de nossa ajuda ou estamos como os mestres da Lei, sentados e apegados ao que diz a Lei?”
O brilho do olhar de Jesus transformou interiormente o paralítico, fazendo-o que fosse capaz de se levantar e caminhar com as próprias pernas em direção à comunidade que o acolheu. Acolher na fé, praticar a fé, acreditar sempre e perdoar sempre são os caminhos apontados por Jesus no confronto com as autoridades religiosas do judaísmo, ainda que, em certos momentos, precisemos romper os tetos que paralisam a vida.
Diante da temática do conflito estabelecido por Jesus, impõe-se outra reflexão. Atualmente, a sociedade brasileira vive momentos de acirramentos de posições antagônicas nas esferas política e religiosa. Os últimos quatro anos foram marcados pela escalada da violência presente em nossa sociedade, a partir do falso discurso em defesa da família, da religião, da pátria, dos bons costumes e contra o comunismo. A arma desenhada no punho da mão esteve na base da bestialidade que recende a terrorismo, ao depredar os bens públicos em Brasília, afrontando a democracia brasileira. Ressalta-se que esta foi construída a duras penas, sob o regime ditatorial que matou, aprisionou, mutilou e paralisou a vida de muitos filhos e filhas de nossa pátria amada Brasil.
É importante lembrar que nada justifica o vandalismo! Tais atitudes não condizem com a fé ensinada por Jesus. Ele afrontou poderes, mas sem o uso da violência. Terrorismos, vandalismos não combinam com o ser cristão! Respeitar as diferenças e as decisões democráticas é o que nos une na luta por um mundo justo, que inclui os empobrecidos. Mudemos o rumo de nossa história na paz e no bem!
Nota
1 SOARES, Sebastião Armando Gameleira; JUNIOR, João Luiz Correia; OLIVA, José Raimundo. Marcos São Paulo/Aparecida: Fonte Editorial/Sinodal, 2013. p. 103. (Comentário Bíblico Latino-Americano; Novo Testamento).
Parabéns Frei Jacir, pela maneira simples e com clareza, sobre o Evangelho, Paz e Bem!