Fraternidade sem fome “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16)

mar 29, 2023Abril 2023, Assinante, Revistas, Theoblog0 Comentários

Jesus nasceu na casa do pão (Beth-lehem, em hebraico). Pão é o alimento feito de muitas farinhas com grãos esmagados. Trigo esmagado com água é assado ao forno ou sobre pedras quentes, para produzir bolachas (matzás). Torna-se sinônimo de todo alimento, fruto do trabalho: “Levar para a mesa o pão de cada dia”. A cada sábado, festeja-se o dia do Senhor Deus, partilhando um pedaço de pão ázimo abençoado em torno da mesa. Cada ano na lua cheia da primavera cumpre o jantar solene, recordando a saída da escravidão do Egito no percurso pascal em busca da terra onde “correm leite e mel” (Jr 11,5).

A oração de Jesus ensina aos discípulos a partir de duas invocações umbilicais e inseparáveis: Pai-Nosso (Abbá) e pão nosso cotidiano. Não rezar a primeira parte sem a segunda, nem a segunda sem a primeira. Pai e pão são nossos, não só meus ou de alguns. O texto do livro do Eclesiástico chega a dizer “que mata o pobre quem lhe tira o sustento (Eclo 34,26)”. Tirar o pão não é roubo, mas assassinato. Na Última Ceia, em Jerusalém, antes de ser preso e assassinado por Pilatos, Jesus celebra um jantar derradeiro em que une alimento, Sua vida e projeto no mistério humano-divino. Retoma a ceia da liberdade de Moisés e a ressignifica com a entrega livre e coerente de Sua vida em favor da humanidade e de toda vida padecente.

Jesus e os discípulos comem juntos e bebem o cálice de Nova Aliança, em que unem suas vidas em “ágape” fraterno e, ao final, de forma inusitada, rompe outro pedaço de pão e entrega a cada um dizendo: “Eis o meu corpo” (Mt 26,28e). Brinda com o cálice (eucaristia: ‘ação de graças’, segundo tradução do grego), dizendo-lhes: “Eis o meu sangue que é derramado por muitos” (Mt 26,28b).

Corpo e sangue precisam ser comidos, bebidos, degustados, mastigados, digeridos para gerar vida e salvação. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) poetiza tal entrega em hino intitulado: “Panis Angelicus”, cantado na festa de Corpus Christi, em que lemos impactados uma teologia que não divide corpo e alma, não separa Deus do pão, o material do espiritual, realizando um amálgama entre a natureza e o divino amor. Deus torna-se pão. O pão torna-se alimento eterno. Ouçamos o poema tomista dedicado ao pão eucarístico: “Panis Angelicus/ Fit panis hominum,/ Dat panis cœlicus/ Figuris terminum/ O res mirabilis!/ Manducat Dominum! Pauper, pauper/ Servus et humilis […]”.1 (Traduzimos: ‘Pão dos Anjos, feito pão dos homens, O pão dos céus dá fim às prefigurações. Ó realidade admirável, alimentam-se de Deus, o pobre, o servo e os humildes’.) O hino diz claramente: ‘Comamos Deus!’ Que palavras corajosas! Imenso paradoxo cristão. Jesus convida os pobres, os servos e os humildes, ou seja, os que passam fome para sentar-se à mesa como eminentes convidados de Deus. Ninguém é excluído.

Em quase todas as religiões, há sempre uma relação entre alimento e atos religiosos, entre o que se pode comer e o que Deus proíbe de ingerir. Sabemos do vegetarianismo hindu, bem como das interdições alimentares da fé judaica e dos irmãos muçulmanos; por exemplo, ao interditar comer suínos, sabemos de que muitos ritos afro-brasileiros incluem alimentos e oferendas; também sabemos que a Bíblia hebraica cita a fome e os duros sofrimentos do povo hebreu em 51 versículos desde o Gênesis, passando pelo Saltério, até ouvirmos as duras palavras dos profetas.

Insuportável é a voz de Amós tecendo duras críticas ao rei Jeroboão, que impôs a fome ao povo. Também anuncia aos palacianos que o próprio Deus fará brotar outro desejo, outra fome, não de pão, nem sede de água, mas uma fome e sede de ouvir a palavra de Javé, mas não serão saciados (cf. Am 8,11). Termina por mostrar um cesto de frutos maduros e proclama: chegou a hora de mudar de atitudes nos palácios, pois no Dia do Senhor haverá gemidos de dor! (cf. Am 8,2-3).

Pão partido é um Sacramento

Se uma pessoa vê alguém com fome e não reparte o pão é como se rasgasse a ética e a fé dos patriarcas. Deus sempre alimenta o justo e o sofredor, mesmo se estrangeiro. O sonho d’Ele é que a justiça e a fidelidade sejam cintos de nossos rins. Escreve Isaías sobre o sonho de Deus: “O lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará.
A vaca e o urso pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi” (Is 11,6-7).

A mudança é radical e estrutural. Os animais carnívoros e que matam os frágeis passam a ser herbívoros e caminhar juntos como iguais e irmãos. Não mais morte e exploração, mas partilha e solidariedade a partir dos pequeninos. Utopia e profecia a partir de uma nova alimentação frugal, sem sangue nem trabalho escravo. Pão e religião caminhando juntos. A gastronomia revela, nas religiões, inúmeros preceitos, práticas e até preferências religiosas. Na fé cristã, a comida e a bebida explicitam o plano de Deus para o humano na criação e mesmo no juízo final. Assim está escrito no livro do Apocalipse de João: “Nunca mais terão fome, nem sede, o sol nunca mais os afligirá, nem qualquer calor ardente; pois o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, conduzindo-os até às fontes de água da vida. E Deus enxugará toda lágrima de seus olhos” (Ap 7,16-17).

Impossível pensar em religião sem comida e bebida, nem em Evangelho sem festa e alimento abundante em todas as mesas. Não é cabível alguns se refestelando e multidões sem nada para comer. Isso fere de morte a mensagem de Jesus. Não se pode separar o celeste do terrestre. Não é possível pensar em louvor ao Divino Pai sem ampliar a mesa com pão e fazer a oferta dos frutos da terra. Assim cantamos com o poeta Zé Vicente (1953-): “[…] A mesa da Eucaristia nos/ Quer ensinar, ah, ah/ Que a ordem de Deus/ Nosso Pai é o pão partilhar […]”.²

Fome e injustiça social são, para as religiões, e, sobretudo para os seguidores de Jesus, os sinais que revelam o pecado da cegueira moral. Deus nunca abandona o pobre e o faminto, o órfão e a viúva. Sempre o Eterno Criador nos oferece o maná aos caminheiros da liberdade. Temos de cuidar para não desprezarmos o alimento fruto do trabalho justo e ficarmos com saudades das “cebolas” do Egito, migalhas ofertadas pelo Faraó para manter o trabalho escravo e o povo calado. Pão deve ser fruto da liberdade e não da exploração de uns pelos outros.

Deus alegra-se em manifestar Seu poder de Criador e Pai entre os famintos, os refugiados, os deserdados, os órfãos. Ele atua primordialmente onde o humano enfrenta situações de aniquilamento e desumanidade. Aquele que tem fome e vive na miséria clama a Deus do fundo de sua angústia e de sua dor e é o próprio Deus quem lhe responde. O pobre (ani, em hebraico) é aquele(a) que sofre no corpo e no espírito. É simpático perceber que em muitas línguas latinas que aquele que compartilha o pão se torna um companheiro. Os povos semitas sempre consideram a mesa como lugar de amigos que partilham. Quem come com alguém e se levanta contra o antigo comensal, se torna um traidor (cf. Sl 41[40],9). Aquele(a) que foi aniquilado(a) ou despojado(a) de seus direitos fundamentais, de alguma forma, é desumanizado(a) ou invisibilizado(a). Deus faz-se pobre para revelar Sua imensa misericórdia.

O Sermão da Montanha de Jesus é todo inspirado no salmo 37, em que descobrimos que os mansos possuirão a Terra. Não serão os vingativos, os caloteiros, os soberbos, os ricos, os mentirosos, os opressores de pobres, os rancorosos, aqueles que herdam a terra, morada humana e criatura divina. Quem é amigo de Deus deve tornar-se um Lázaro (Eli Azar: ‘Deus é meu auxílio’) e não um rico epulão, com roupas finas e elegantes, mas sem salvação nem futuro, pois mesquinho (nosso povo o chama de pão-duro!). Para o pobre que tem fome de pão e de justiça, fome de pão da terra e do pão do céu, Deus é sempre auxílio veraz. Quem parte o pão se torna por direito, filho de Deus. Assim são os sermões duríssimos de São João Crisóstomo (347-407): “Tornemos útil o que é supérfluo. Deus vos deu um teto para vos abrigardes da chuva, não para forrá-lo de ouro, enquanto o pobre morre de fome. Deus vos deu vestimentas para vos cobrirdes com elas, não para bordá-las luxuosamente, enquanto Cristo morre de frio. Deus vos deu uma casa, não para morardes nela sozinhos, mas para receberdes o próximo. Não existe nenhum pobre que por necessidade cometa tantos crimes como os ricos”.³

Deus alegra-se em manifestar Seu poder de Criador e Pai entre os famintos, os refugiados, os deserdados, os órfãos

Pão, fruto do suor humano e da graça divina

Os escritores da Bíblia hebraica chegam inclusive a relacionar a ação de Deus às chuvas necessárias para ter pão à mesa, como ainda hoje fazem os agricultores de todos os biomas do Planeta. Deus e Terra vivem sempre em comunhão. Segue um trecho do estudo de Robert Clements (1950-)
sobre a ação divina (meteorológica!) para que o pão chegue às mesas: “Especialmente importante para lavouras na seca é a data da chuva inicial que marca o fim da estação seca do verão (a chuva de outono de Jr 5,24) e a data das ultimas chuvas (a chuva da primavera de Jr 5,24). A primeira é necessária para preparar o solo para arar e semear, e a última tem efeitos importantes no amadurecimento das colheitas. A natureza crítica dessas duas datas de chuva de novo está refletida religiosamente na crença de que são uma das recompensas de Iahweh para o seu povo em troca da fidelidade na aliança: ‘Darei chuva para a vossa terra no tempo certo: chuvas primeiras (de outono) e chuvas últimas (de primavera). Poderás assim recolher teu trigo, teu vinho novo e teu óleo’ (Dt 11,14; cf. Jr 5,24; Os 6,3; Jl 2,23) Chuva no fim da estação, se o tempo for certo e não muito atrasada, leva os cereais ao amadurecimento adequado, de modo especial o trigo que era o cereal preferido”.4

Jesus partilhando o pão, 2001, Maximino Cerezo

Jesus partilhando o pão, 2001, Maximino Cerezo

Sempre impressiona saber que a fé cristã se fundamenta e que culmina na Eucaristia, e que a ceia dos cristãos é materialmente composta de dois produtos de terras mediterrâneas: pão e vinho. Há dois alimentos básicos do povo semita colhidos nas encostas da Judeia e nas planícies da Palestina postos nos altares onde Cristo se faz Cordeiro Pascal e o povo celebra as maravilhas do Deus vivo e verdadeiro. Confirma o ditado latino quando diz: “In vino veritas” (‘No vinho temos a verdade!’). De outro lado conhecemos este ditado popular: “Ninguém deve comer o pão que o diabo amassou”.

Deus sempre envia profetas para proclamar a partilha e a divisão dos bens, sobretudo do alimento para o corpo humano, Templo de Deus. Escreve o frade capuchinho Luigi Padovese (1947-): “A teologia se reflete na antropologia. Assim, por exemplo, um discurso sobre um Deus que não se mistura a este mundo é a premissa para uma antropologia de separação e de desprezo das realidades criadas. Ora, o Deus de Jesus Cristo é um Deus para os homens: próximo, feito história, um Deus trinitário e encarnado. Não é de admirar, pois, que a ética cristã primitiva, mais do que adequação a uma norma, se configure como resposta na fé a esse Deus entendido como parceiro. A fé nessa contínua atenção de Deus em relação ao homem tem consequência imediata na concepção do culto, que não pode restringir-se a alguns momentos nem pode estar circunscrito a certos lugares. Nenhuma área da vida humana pode subtrair-se a esse culto. Por essa razão, todo pecado – seja ele qual for – é sempre uma culpa religiosa”.5 Como orientação preciosa, ressaltam-se as palavras do cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer (1949-):
“A indiferença diante do sofrimento alheio mata, antes mesmo que a fome. Jesus ensinou, também, que a urgência da fome se resolve mediante a partilha. Sozinhos, não conseguiremos. E a partilha precisa ser promovida mediante políticas públicas e iniciativas generosas de cada cidadão, para proporcionar trabalho, geração de renda, produção de alimentos, acesso a eles e o socorro a quem padece de fome”.6

Notas

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IhtbV5huR4o&t=10s. Acesso em: mar. 2023.
2 Disponível em: https://www.letras.mus.br/ze-vicente/1419622/. Acesso em: mar. 2023.
3 CRISÓSTOMO, São João. Patrologia Graega. Paris: J. P. Migne Editorem, 1862. v. 48. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=Iy7pSZ3hIMIC&pg=PA531&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=3#v=
onepage&q&f=false. Acesso em: mar. 2023.
4 CLEMENTS, Ronald E. O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas São Paulo: Paulus, 1995, p. 80.
5 PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística, São Paulo: Loyola, 1999. p. 124.
6 Disponível em: https://osaopaulo.org.br/colunas/fome-outra-vez/. Acesso em:
mar. 2023.

 

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