Dom Helder Camara, o bispo da Igreja sem fronteiras

out 26, 2023Novembro 2023, Reportagem, Revistas0 Comentários

Localizada no Bairro da Boa Vista, no Recife, a igreja onde dom Helder viveu e morreu guarda relíquias de sua vida e memórias de um país ainda em construção

Uma igreja de paredes brancas, portas e janelas de madeira de cor verde, no Bairro da Boa Vista, no Recife (PE), chama a atenção por sua beleza em meio ao vaivém da metrópole. De estilo barroco, a igrejinha carrega em sua fachada o emblema de Capela Imperial, concedida em 1859, quando da visita do imperador Pedro II (1825-1891). Adentrá-la, para uma oração, é pisar na memória de luta e resistência dos recifenses e do Brasil, em diferentes tempos de nossa história.

“Pode até ser que consigamos convencê-los que torturar não mata ideias, que o terror é insuficiente para a manutenção da ordem. Precisamos tentar convencê-los. Eu continuo tentando.”
Dom Helder Camara

As obras dessa igreja foram iniciadas em 1646, a pedido de Henrique Dias (?-1662), um militar filho de escravos libertos, que resistiu à invasão holandesa na Batalha dos Guararapes, no século XVII. Concluída em 1748, o local foi erigido em honra a Nossa Senhora da Assunção como uma promessa de Henrique Dias, que acreditava ter sido protegido por ela no combate.

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Para além do fato histórico de resistência do militar negro e de seus combatentes à invasão holandesa, nos anos de 1648 e 1649, esta mesma igreja guarda em si, em suas paredes, um acervo documental, de objetos e memórias de um personagem que pode ser declarado o novo santo da Igreja Católica: o cearense Helder Pessoa Camara.

Filho de João e Adelaide Camara, o menino de olhos claros foi o décimo filho do casal. Ele nasceu em um domingo, 7 de fevereiro de 1909, e foi batizado pouco tempo depois, em 31 de março, na Capela Santa Casa de Misericórdia, em Fortaleza (CE).

Segundo registro dos escritores Nelson Piletti e Walter Praxedes, na obra Dom Helder Camara: o profeta da paz (2008), na ocasião, o menino Helder estava um tanto adoentado, por isso o celebrante, monsenhor José Menescal, precisou usar água morna na cerimônia.

Essa curiosidade é mais uma das tantas peculiaridades reveladas pelas obras já publicadas sobre dom Helder e que devem se multiplicar nos próximos anos, tendo em vista seu processo de canonização, que avança sob o pontificado do papa Francisco (1936-). Em julho, o Dicastério das Causas dos Santos comunicou que nomeou o monsenhor espanhol Melchor José Sanchez de Toca y Alameda (1966-) como relator da Positio do processo de dom Helder Camara. Com isso, ele é o responsável por, a partir de toda a documentação enviada pela Arquidiocese de Recife e Olinda ao Vaticano, reunir provas de que dom Helder, como Servo de Deus, viveu, em grau heroico, as virtudes teologais (fé, esperança e caridade); possui virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança); e virtudes de estado clerical (pobreza, humildade, castidade e obediência).

A igreja de Nossa Senhora das Fronteiras guarda em si, em suas paredes, um acervo documental, de objetos e memórias de um personagem que pode ser declarado o novo santo da Igreja Católica: o cearense Helder Pessoa Camara.

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O relatório elaborado pelo monsenhor espanhol também incluirá depoimentos de testemunhas (Summarium Testium), além de reunir os documentos mais relevantes de autoria de dom Helder ou produzidos sobre ele (Summarium Documentorum). E tal trabalho só pôde ser realizado porque uma equipe amiga e devota de dom Helder pesquisou e organizou toda a trajetória do bispo e possibilitou o envio desse conteúdo a Roma. Irmã Maria Vanda de Araújo (1943-), presidente do Conselho Curador do Instituto Dom Helder Camara (IDHeC), faz parte dessa equipe.Foto Reportagem 04 estatua dom Helder recorteNov23

Nossa reportagem conversou com Irmã Vanda sobre o processo de canonização, percorrendo as dependências da “igreja de dom Helder”. Ali, naquele local, conjugam-se o espaço litúrgico onde acontecem as missas, um Centro de Exposições Permanentes, o Memorial Dom Helder e o Espaço Dom Lamartine, uma área próxima ao jardim em que são realizados bate-papos, atividades culturais, uma homenagem ao amigo e então bispo auxiliar de dom Helder. Foi ali que tomamos uma água fresca e passamos mais uma vez o repelente para seguir com a visita monitorada.

Entre os bancos da igrejinha concebida por Henrique Dias, Irmã Vanda não respondeu sobre os possíveis milagres que teriam sido atendidos pela intercessão de dom Helder e estão sob o escrutínio do Vaticano. Ela desconversou, mas revelou mais. “Dom Helder não estaria preocupado com essa história de ser santo. Todo o trabalho dele era de ajudar os pobres. Ele via Cristo nos pobres”, contou.

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O processo de beatificação e canonização de dom Helder foi aberto pela Igreja de Pernambuco em 2014 e a fase arquidiocesana foi concluída em 2018. Em 2022, no encerramento do 18o Congresso Eucarístico Nacional, a Santa Sé anunciou a validação jurídica de todo o material enviado a Roma, para a comemoração de Irmã Vanda, que seguiu nos guiando na visita.

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No espaço contíguo à Sacristia, nos fundos da igreja, uma porta se abriu e, com ela, descortinou-se a intimidade de um quase santo. Simplicidade e organização repetem ali a configuração do que foi a casa do bispo cearense. Ao ser nomeado arcebispo de Olinda e Recife, em 1964, dom Helder transferiu-se para as dependências anexas à Sacristia, onde morou de 1968 até 1999, ano de sua morte.

A visita é aberta ao público e pode ser feita com tempo e apreço principalmente pelos detalhes, que revelam gostos e afetos. Os muitos livros chamam a atenção e revelam dom Helder como um leitor voraz, curioso e atento à produção literária de todo o mundo. Quadros, roupas e móveis mostram um cotidiano sem apego e com muita disciplina.

A escrivaninha, repleta de objetos religiosos, fotografias de amigos e Bíblias, foi o espaço escolhido por ele para elaborar suas mensagens de esperança pelo mundo, suas ideias e projetos pela paz e contra a pobreza. A visita à Exposição Permanente mostra de forma didática toda essa produção e atuação, com destaque para a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), em 1952 e 1955, respectivamente.

No Concílio Vaticano II (1962-1965), dom Helder o foi propositor do “Pacto das Catacumbas”, documento com treze compromissos (assinado nos últimos dias do Concílio), como inserir os pobres no centro da atividade pastoral e levar uma vida simples, rejeitando símbolos de privilégio e poder.

“Quando dou comida aos pobres me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista.”
Dom Helder Camara

Esse documento influenciou a criação do movimento da Teologia da Libertação, movimento socioeclesial surgido na Igreja Católica na década de 1960 que foi alvo de críticas de parte da própria Instituição.

De “padre integralista” a “bispo comunista”

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Dom Helder foi ordenado padre em 1931, aos 22 anos, e na ocasião recebeu a tarefa de acompanhar os Círculos Operários Cristãos e a Juventude Operária Católica (JOC), contribuindo para a alfabetização de adolescentes mais vulneráveis pobres e com a organização sindical de
mulheres das camadas populares, como lavadeiras, passadeiras, empregadas domésticas e outras categorias.

Com viés nacionalista e formação ideológica recebida no seminário, o então padre Helder era simpático a movimentos como a Legião Cearense do Trabalho, grupo político-sindical e religioso que rejeitava o capitalismo e o comunismo, buscando ideais da Idade Média (séculos V ao XV). Foi militante na Ação Integralista Brasileira, movimento de inclinações fascistas que reuniu brasileiros sob o lema “Deus, Pátria, Família”.

É importante ressaltar que a coincidência da utilização do lema “Deus, Pátria, Família” em distintos momentos da história brasileira se repete também no emprego de termos usados por parte da sociedade para se referir a dom Helder: “bispo comunista” e “bispo vermelho” eram e ainda são alguns dos evocativos ainda hoje utilizados para tentar diminuir sua notoriedade. Sem êxito, mas provocando confusão.

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A reportagem de O Mensageiro de Santo Antônio pesquisou cerca de três mil boletins da Arquidiocese de Olinda e Recife, disponíveis no Arquivo Dom Lamartine, localizado no Bairro da Várzea, no Recife, datados a partir de 1968. Após uma análise ainda parcial, foi possível observar inúmeras campanhas de difamação de parte dos católicos, de membros da TFP contra a imagem de dom Helder, utilizando esses e outros termos difamatórios e sem contextualização.

Na mesma pesquisa, observamos que os boletins arquidiocesanos eram utilizados por dom Helder e seus agentes de pastoral para denunciar a perseguição, durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985), de lideranças religiosas e leigas da Igreja Católica. Impedido pelo Estado brasileiro de conceder entrevistas à imprensa, ele denunciou o sequestro e o assassinato de padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto (1940-1969), ocorrido em 27 de maio de 1969, nas páginas do Boletim Arquidiocesano.

Assessor de dom Helder, o jovem padre foi, segundo o “Relatório Final da Comissão Estadual da Verdade”, vítima de um crime político. “[…] Crime político perpetrado por agentes do Estado de Pernambuco, em conluio com civis integrantes da chamada extrema direita, visando a aterrorizar, amedrontar e coibir o inconteste foco de resistência ao regime militar então exercido por parte considerável da Igreja Católica no Estado de Pernambuco, sob a liderança do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Camara”, aponta a conclusão do referido documento (volume I), publicado no Recife em 2017.

Documentos como esses boletins, objetos e a própria Igreja das Fronteiras disponíveis para visita e consulta são mantidos pelo Instituto Dom Helder Camara (IdheC) e preservam a memória e o legado do bispo. Mas não só isso; eles também possibilitam a reconstituição de capítulos da história de nosso país que não devem ser esquecidos.

Ao longo de seus noventa anos de vida, ao percorrer Estados como Ceará, Rio de Janeiro e Pernambuco, dom Helder deixou marcas e legados ainda hoje notórios na cultura da ação cidadã católica em defesa dos direitos humanos, com destaque para sua atuação ao longo da ditadura civil-militar instalada no Brasil.

“Metralharam, não é fábula, não. Tem foto”, disse Irmã Vanda, referindo-se ao episódio de 24 de outubro de 1968, no qual a casa de dom Helder foi metralhada. “Um buraco desse tamanho na parede. Metralharam e escreveram ‘CNBB: Cambada Nacional dos Bandidos de Batina’. Aí o dom Helder, espertíssimo como era, recebeu aqui uma comissão do exterior para uma entrevista. Seguiu conversando e se posicionou na parede próximo ao buraco da bala. A reportagem teve repercussão no exterior, o mundo todo viu. Dom Helder era muito estratégico, ele enunciou”, completou a religiosa, entre os objetos que rememoram a história do bispo.

“Reivindiquemos, juntos, o direito e o dever de defender a criatura humana, a pessoa humana, o bem comum. Se isto é política, não é política partidária, é defesa do homem, nosso irmão; é defesa da justiça, sem a qual a paz não passa de palavra sonora.”
Dom Helder Camara

Não à toa, a casa de dom Helder era alvo de ataques. Ali, em torno de uma mesa redonda ladeada por uma rede, ele fazia reuniões com seus assessores, amigos e com todos os que o procuravam. “Ele não se recusava a atender ninguém, e costumava ele mesmo ir atender à porta”, lembram amigos entrevistados.

Dom Helder recebeu incontáveis condecorações e prêmios por suas atuações em defesa da paz. Por três vezes, foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz, mas documentos obtidos pela Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Camara, por meio do Ministério das Relações Exteriores, revelaram uma ação de “neutralização” do regime militar brasileiro à indicação do arcebispo a esse prêmio.

Em algumas de suas “Circulares Conciliares”, correspondências redigidas por dom Helder a colaboradores mais próximos iniciadas em 1962, quando participou do Concílio Vaticano II em Roma, escritas à mão e geralmente de madrugada, é possível sentir a reação de dom Helder em relação às campanhas de difamação de que era alvo.

“Se se entende por política a preocupação com o bem comum, o padre pode e deve ser político, o que de modo algum é sinônimo de engajamento político-partidário. Para mim é evidente que, em área subdesenvolvida como o Nordeste brasileiro, trabalhar pela promoção humana e pela conscientização das massas em condição infra-humana é exigência do próprio Evangelho. E completa: por mais absurdo que pareça, há quem, de fato, me considere subversivo e comunista”, escreveu em sua “Circular n. 623a”, com data de 6/7 de dezembro de 1969, comentando a seguir para a revista Confirmando de Buenos Aires.

Tais circulares também estão disponíveis em livros para consulta e aquisição na Igreja das Fronteiras. É preciso tempo e disposição para aprender com dom Helder e suas infindáveis lições. Em 1984, após completar 75 anos, ele apresentou sua renúncia. Em 1985, transferiu o comando da Arquidiocese a dom José Cardoso Sobrinho (1933-). Faleceu em 27 de agosto de 1999, aos noventa anos, no Recife.

Ao final de minha visita à Igreja das Fronteiras, em frente à porta principal, testemunhei ao acaso um diálogo que ilustra bem a relevância daquele lugar, das lições desse bispo cearense. Era uma conversa entre um dos tantos vulneráveis do Recife e uma religiosa vicentina que passava por ali. “Irmã, vamos ficar aqui mesmo, porque essa é a igreja de dom Helder, a igreja dos pobres, a nossa igreja”.

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Autor

  • Karla Maria

    Jornalista, autora dos livros Mulheres extraordinárias (2017); Irmã Dulce: a santa brasileira que fez dos pobres sua vida (2019) e O peso do jumbo: histórias de uma repórter de dentro e fora do cárcere (2019), publicados pela Paulus Editora.

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