O catolicismo popular penetrou nas terras brasileiras pelas festas portuguesas que foram acolhidas e transformadas pelos povos indígenas e pelo povo negro. A fé católica foi regada com a água boa do culto aos santos protetores, nas lendas narradas e nas danças celebradas ao redor de fogueiras e ruas. Nosso catolicismo se fez plural, sempre em mutação, relativamente livre e autônomo, como bem proclama o dito popular: “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”. O mês de junho é dos mais fecundos em festas que alimentam a vida do povo: é festa para santo Antônio, ao profeta João Batista e a São Pedro, conectadas às festas litúrgicas do Divino Espírito Santo, Santíssima Trindade, Corpus Christi e às antiquíssimas memórias dos Corações de Jesus e de Maria. O catolicismo no Brasil soube mostrar a força popular de um Deus que caminha pelas estradas dos interiores com rosto e expressões sertanejas. Ele se mesclou com as festas, as comidas, as danças das culturas indígena, negra e portuguesa criando um rico mosaico, que se expressa bem no dizer de Pierre Sanchis: “há religiões demais nessa religião”. Diz o pesquisador mineiro Faustino Teixeira: “Há um catolicismo santoral, bem característico de nosso país, possibilitando uma rica ampliação das possibilidades de proteção”.1
Santo Antônio, o nosso português brasileiro
Nascido em Lisboa, por volta de 1190, Antônio falece em Arcela, perto de Pádua, Itália em 1231. Ele conhece de memória todos os textos sagrados e mesmo os comentadores de sua época. Percorreu a pé toda a Emília, Toscana, Lombardia, Veneza, Bolonha, Romanha, Rimini e Pésaro. Santo Antônio será conhecido como “Il santo di tutto il mondo” (O Santo do mundo inteiro), como disse o papa Leão XIII, em 1895, na memória do sétimo centenário de seu nascimento. Onze meses após sua morte, foi canonizado.
O santo franciscano pregou a pobreza e a penitência, reconfortou os que sofriam, criticou acidamente os ricos (especialmente por conta do pecado da usura e da avareza) e foi duríssimo contra padres relapsos e carreiristas, conclamando-os a uma vida evangélica. Seu culto e memória se expandem trazidos pelos navegadores portugueses. No Brasil é um dos santos de devoção mais cultuado nas cidades e comunidades católicas. Há 34 municípios brasileiros com seu nome e 228 freguesias ou catedrais que o têm como patrono e protetor de dezenas de invocações. No Brasil se declamam estas trovas antiquíssimas: “Quem milagres quer achar, contra os males e o demônio, busque logo a Sant’Antônio, que só há de encontrar. Aplaca a fúria do mar, tira os presos da prisão, o doente torna são, o perdido faz achar. E sem respeitar os anos, socorre a qualquer idade; abonem esta verdade, os cidadãos paduanos”.
São João e o fogo do amor
O santo mais amado do povo nordestino é João Batista. Alguns católicos chegam a acreditar que não há vida plena sem festa em junho. Sem participar da noite de São João, o ano estaria perdido. São João é festejado com farta alimentação à base de milho e amendoim, músicas, danças, bebidas. O santo, segundo a tradição, adormece durante o dia que lhe é dedicado pelo povo. E não se deve acordá-lo. Assim diz o povo reverente: “Se São João soubesse quando era o seu dia, descia do céu a terra, com prazer e alegria. Minha mãe, quando é meu dia? – meu filho, já se passou! – numa festa tão bonita, minha mãe não me acordou? Acorda, João! Acorda, João! João está dormindo, não acorda, não!”2 Seu nascimento coincide com o solstício de inverno no Brasil. É a noite mais longa do ano. São João veio acompanhado das superstições, crendices e agouros da Península Ibérica. Os indígenas ficaram seduzidos com a alegria da festa.
São Pedro e as chaves do perdão
Outro terceiro santo do mês é São Pedro, apóstolo de Jesus. Simão Pedro é seu nome. Filho de Jonas, irmão de André, originários de Betsaida. É um homem casado que vive da pesca à margem do lago Tiberíades, na Galileia. Recebe de Jesus um novo nome: Képha, que quer dizer “rocha ou gruta de abrigo”, na língua aramaica. Terá a primazia entre os doze apóstolos para servir na unidade e confirmar a fé do colégio apostólico, o primeiro entre os pares. É o apóstolo que constrói pontes, mas sabe que ele mesmo é frágil e precisa sempre do perdão de Deus.
A devoção popular guardou na memória festiva dos três santos juninos o essencial da mensagem de Jesus: a proximidade do Deus que é Pai. Exprimiu-se na alegria do povo que, mesmo explorado e machucado pelo cotidiano, faz da festa um intervalo de luz entre as trevas. As festas dos santos exprimem a alma do povo e seus melhores momentos de partilha na música, na culinária e ao redor das mesas. São prenúncios eucarísticos do Reino de Deus em ação.
No Brasil convivem quatro tipos de catolicismo: o guerreiro, o patriarcal, o mineiro e o popular. Escreve Paulo Suess: “o catolicismo popular representa uma síntese da herança indígena, africana e portuguesa. Propriedades características dessa religião popular são a fé na providência, em oposição à fé no progresso propagada oficialmente; a volta à tradição, que dá certeza e segurança, mas pode ser instrumentalizada facilmente por movimentos tradicionalistas; e um rigorismo moral, que aparece na luta contra as paixões. A ambiguidade de ações externamente comuns – participação comum nas festas, na veneração dos santos e nos sacramentos – escapa àqueles que também hoje precipitadamente falam de um catolicismo comum a todos”.3 Há um tesouro a ser cuidado pelos pastores do povo.
O dia seguinte da pandemia de Covid-19 será celebrado com festa, abraços e carinhos terapêuticos. Ao sair da caverna, depois de dois anos de hibernação, precisamos andar, cantar, abraçar e festejar. Precisamos fazer um novo mundo. Precisamos de festas de uma teologia da vida. Festas onde os santos dancem conosco! Festas como expressão da espontaneidade das crianças. Festa com comida e bebida, partilhadas em comunidade. Festas para dançar, cantar e louvar a Deus. Festas que digam “não” ao medo e à mentira. Festas pentecostais. Festas jesuânicas. Festas marianas. Festas trinitárias que fazem circular o amor divino. Deus é o motor de nossas festas. A melodia de Zé Vicente alimenta utopias e sonhos: “Na festa do meu povo, Há vinho, arte, comida, Mesa fraterna servida, A gente pode saciar! É nova sociedade, É mundo novo nascendo, Plantado entre os pequenos, A vida vai transformar! Vinho melhor foi guardado, Pra hora que já soou novo céu e nova terra, Primavera já chegou!”.4
Referências
1 “Muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”: o Catolicismo Plural. Entrevista especial com Faustino Teixeira e Renata Menezes. IHU-ADITAL, 13 jan. 2010. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/28849-%60%60muita-reza-e-pouca-missa-muito-santo-e-pouco-padre%60%60-o-catolicismo-plural-entrevista-especial-com-faustino-teixeira-e-renata-menezes. Último acesso em: 7 maio 2022.
2 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. p. 404.
3 SUESS, Paulo Gunter. Catolicismo Popular no Brasil: tipologia e estratégia de uma religiosidade vivida. São Paulo: Loyola, 1979. p. 97.
4 ZÉ VICENTE. Na festa do meu povo. Disponível em: https://www.letras.mus.br/ze-vicente/1013582/. Último acesso em: 7 maio 2022.
Fernando Altemeyer Junior
Assistente doutor da PUC-SP
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