No dia 2 de agosto, data em se celebra o Perdão de Assis, ocorreu mais um caso de suicídio de um sacerdote no Brasil. Dessa vez,
padre Marcos Leite Azevedo (CP) foi encontrado morto dentro da Igreja Bom Jesus do Cabral, em Curitiba (PR), pela qual era responsável desde fevereiro.
Por meio de nota, a Arquidiocese de Curitiba confirmou o falecimento do sacerdote e informou que não havia informações sobre o ocorrido e que as autoridades competentes estavam cuidando das investigações.
Natural de Carmo do Rio (MG), padre Marcos nasceu em 21 de setembro de 1963. Professou a regra dos Passionistas em 21 de janeiro de 1989 e foi ordenado sacerdote em 16 de janeiro de 1994. Com quase trinta anos de sacerdócio, ele entra para uma estatística que vem aumentando nos últimos anos no Brasil.
Somente em 2021, a estimativa é que mais de dez padres tenham cometido suicídio no País. Entre 2017 e 2018, há relatos de ao menos vinte casos de presbíteros que tiraram a própria vida. Ressalta-se que esses dados são imprecisos, pois não há um órgão oficial que realize um controle ou atue na prevenção desses casos.
Procurado pela reportagem de O Mensageiro de Santo Antônio, o Conselho Nacional dos Presbíteros (CNJ), apesar de concordar em fornecer informações, não respondeu mais aos nossos contatos.
Já a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) informou, por meio de nota, que há uma pesquisa sobre a saúde dos presbíteros em andamento, mas, como é um assunto que ainda está sendo avaliado, o presidente da Comissão para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada, dom João Francisco Salm, não considera prudente comentar sobre isso no momento. O foco da Comissão com a pesquisa é futuramente oferecer orientações para o cuidado com a saúde integral de padres e bispos.
A CNBB cita um levantamento que começou a ser realizado em 2022, que também foi tema de um seminário realizado em julho. Com a temática “A importância dos cuidados com a saúde emocional para a formação presbiteral”, o evento ocorreu em comunhão com as “Diretrizes para a Formação dos Presbíteros da Igreja no Brasil” (n. 110)1 , que afirma que “é missão da comunidade de formadores ajudar o seminarista a discernir não só se é chamado por Deus, mas se tem condições para assumir o que o presbiterado pressupõe. Caso seja necessário, ela auxiliará o candidato a procurar também orientação psicológica especializada” (n. 201).
Transtornos mentais versus espiritualidade
O aumento de casos de suicídios entre sacerdotes assusta, pois aqueles que deveriam zelar pelo bem-estar dos fiéis acabam atentando contra a própria vida. O psicólogo clínico Eduardo Galindo explica que os transtornos mentais apresentam os mesmos índices em todos os grupos, sem exceção.
Ele destaca ainda que, muitas vezes, o sacerdote ou o religioso precisa recorrer a vários especialistas para chegar a um diagnóstico seguro. “Nos últimos anos, tem-se percebido um aumento dos transtornos de ansiedade, principalmente o Transtorno do Pânico e a Síndrome de Burnout, além da depressão que é a doença mais incapacitante do mundo”.
Galindo enfatiza ainda que a pessoa precisa buscar ajuda especializada quando encontrar dificuldades para manter sua rotina, notar alteração no humor, bem como falta de concentração, perda de sono, preocupações constantes e estados de tensão e ansiedade.
Apesar disso, o psicólogo explica que há uma dificuldade de o sacerdote reconhecer que precisa de ajuda. “Além desse preconceito, ocorre o desconforto de falar sobre sua queixa. Alguns se sentem mal compreendidos pelos psicoterapeutas, que desconhecem o contexto eclesial e institucional da vida presbiteral”.
Galindo ressalta que os presbíteros e os religiosos apresentam um ponto favorável no tratamento dos transtornos psíquicos, que é a espiritualidade bem desenvolvida, pois contribui para o equilíbrio emocional e a saúde mental. “Uma pessoa que tem fé e esperança conscientes vive o princípio da realidade, isto é, ela é consciente do mundo real e vive com responsabilidade suas escolhas. A espiritualidade não está em oposição ao tratamento psicoterapêutico. A psicoterapia é um espaço do paciente no qual o mundo interno e as experiências de vida precisam ser expressadas”.
Para o psicólogo, foi construída uma imagem coletiva de um sacerdote que está muito desconectada da realidade humana. O maior risco é quando o presbítero reforça em si mesmo e no povo a imagem de uma pessoa sempre forte.
Modelo de formação esgotado e ultrapassado
“Nosso modelo formativo de presbíteros não é somente arcaico, mas está falido. Não se sustenta mais”. O alerta é do padre Manuel Joaquim R. dos Santos, formado em Filosofia pela Universidade Católica de Lisboa e presbítero da Arquidiocese de Londrina.
Ele explica que a Igreja, sob o pontificado de São João Paulo II (1920-2005), reforçou o modelo tridentino de seminários, que perdura até hoje. Nele, jovens são retirados de seus meios, vivendo uma vida artificial, repleta de “mordomias” e perdendo completamente a capacidade de dialogar com o diferente ou até de experimentarem as derrotas, inerentes a qualquer debate. “Eles são ‘preparados’ para dizer a última palavra! E isso é um desastre em termos atuais”.
Segundo o sacerdote, os seminaristas saem da formação considerando-se garantidores da ortodoxia eclesiástica, conhecedores da doutrina e especialistas em quase tudo.
Porém, há um apego a esse desempenho formativo, que representa uma fobia na adesão ao novo modus vivendi e operandi que a Igreja apresenta, no diálogo com o mundo. Atualmente, seminaristas mal preparados são formados para uma consciência de que a missão que dizem servir passa pela autorreferencialidade.
Padre Manuel destaca que o presbítero não é um super-homem e os seminaristas devem ter plena consciência dessa realidade em todo o processo formativo. O que for além disso é deformação, que conduzirá às mazelas que temos denunciado como causas de suicídio.
Super-homens?
Todas as fontes ouvidas pela reportagem de O Mensageiro de Santo Antônio afirmaram que os casos de suicídio entre presbíteros surpreendem, pois trata-se de religiosos. Porém, como destaca o padre Jovanês Vitoriano, sds, presidente do Grupo de Apoio aos Presbíteros da Regional Sul 1-CNBB São Paulo, “eles também são seres humanos e estão sujeitos a toda e qualquer dificuldade que atinge sua condição de vida”.
Na opinião do sacerdote, os casos de suicídios, que ele ressalta não serem um fenômeno atual, podem estar relacionados ao modo de vida dos presbíteros, pois, ao contrário do que muitos pensam, é um ritmo exigente diante de todas as cobranças e atribuições de um ministério sacerdotal, como a questão pastoral, administrativa, moral, intelectual e de fé. Em resumo, a busca de uma vida reta, sem defeitos ou falhas.
“Quem não sabe lidar com essas questões pode ser levado ao isolamento, a frustrações, a angústia, a abandono, a preocupações, que, somadas às muitas atividades que a função exige, pode gerar uma incapacidade de lidar com tudo isso, podendo levar a atos extremos como o suicídio”, afirma.
Padre Jovanês ressalta que, ao receberem a congregação, os sacerdotes não se transformam em super-homens. Além disso, essa condição não os torna imunes às doenças físicas e psicológicas que levam à incapacidade de exercer a vocação da qual foi chamado de curas das almas.
Nos seminários, durante a formação, é importante falar aos presbíteros sobre saúde e bem-estar que passa por um autocuidado, com o objetivo de preparar as atuais gerações para enfrentar bem os desafios da vida tão exigente.
Consequências do isolamento social provocado pela pandemia
Nos últimos dois anos, o isolamento social ocasionado pela pandemia de Covid-19 agravou os casos de doenças psíquicas na sociedade e também nos presbíteros, pois, além do afastamento das atividades e do convívio com os fiéis, veio também “a crise financeira, a mudança de hábitos, o medo da morte, desenvolvendo assim muitas crises de ansiedade, depressões, síndromes e transtornos”, destaca padre Jovânes.
Ele ressalta que esse foi um período extremamente rigoroso, que se, por um lado, muitos conseguiram usar a criatividade para dar continuidade às atividades, por outro, muitos tiveram dificuldades, o que os levou a um adoecimento. “Isto deixou uma parte dos presbíteros cansados e fadigados, pois em diversos momentos se encontraram sozinhos tendo que lutar para manter a igreja funcionando mesmo que de outro modo. Além disso, diversos presbíteros foram contaminados pela Covid-19 deixando sequelas permanentes e impossibilitando o pleno serviço”.
O sacerdote destaca ainda que o cuidado com o presbítero nunca foi tão importante como nesse período, pois, mesmo tendo de zelar por seu rebanho, ele tinha de cuidar de si mesmo. “O pastor ferido não tem condições de levar sua missão adiante se não estiver saudável para isto”.
Como salvar vidas?
O quadro atual das doenças psíquicas que acometem presbíteros no Brasil é grave e requer soluções urgentes para que vidas sejam poupadas. A CNBB propõe sugestões nesse sentido com o levantamento que vem fazendo sobre a saúde mental do clero. Porém, para o psicólogo Eduardo Galindo, o primeiro passo é não considerar esse fenômeno como um tabu.
É importante que esse assunto seja aprofundado nas dioceses e congregações. Além disso, é necessário criar uma Pastoral Presbiteral comprometida com a dimensão da saúde psicoafetiva dos sacerdotes e religiosos. Para isso, é fundamental investir em programas de desenvolvimento emocional e na saúde mental desde o seminário; momentos de reuniões e encontros para promover a educação emocional abrindo espaços para o diálogo e as instruções sobre esse tema; criar uma rede de apoio com profissionais sensíveis à escuta presbiteral e religiosa, opina.
Já para o padre Manuel, resultados a longo prazo passam por mudanças no processo formativo, que segundo ele, é o epicentro da situação. O seminarista que vê na vida de padre um glamour, uma “vida confortável” repleta de roupas litúrgicas, com um povo clericalizado o aplaudindo, é um potencial frustrado que desenvolverá transtornos constrangedores. No Seminário deve ficar claro que esse não é o caminho para se tornar um padre “segundo o coração de Jesus””, salienta.
Por fim, padre Jovanês ressalta que os presbíteros são tão falíveis como qualquer outra pessoa e por isso é necessário ter a consciência de que essa condição não dá superpoderes. “Nesse sentido, é necessário buscar ajuda quando acender a luz vermelha diante da vida para não tomar decisões precipitadas e chegar a uma solução extrema”.
Nota
1 SANTOS, dom Benedito Beni dos. Diretrizes para a Formação de Presbíteros da Igreja no Brasil Revista de Cultura Teológica, São Paulo, n. 101, jan.-abr. 2022. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/issue/view/1053. Acesso em: ago. 2022.
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