Aqui vem retratada a realidade de duas mães sofredoras. Trata-se de uma inquietante situação vividas por elas; essas mães, no entanto, lutam e esperam por um horizonte que lhes dê esperança e as faça sorrir!
Às 8h20 de 6 de maio de 2021, uma quinta-feira, Adriana conversa pela última vez com seu filho Marlon. Estavam ao telefone. Ela em sua casa, e ele num cômodo apertado de um beco da Favela do Jacarezinho, no meio de uma ação policial. Mais uma! Agora na zona norte do Rio de Janeiro.
Ela não sabia, mas seu filho seria morto naquele dia, ao lado de outras 27 pessoas. “Ele me disse que estava encurralado em uma casa e que não conseguiria sair. Dez minutos depois, me mandou um áudio pedindo pra rezar por ele”. Desde então, Adriana nunca mais parou de rezar. Primeiro rezou clamando por boas notícias, depois pelo corpo do filho, e agora diariamente reza pedindo justiça divina. Não acredita na dos homens.
O enterro do filho aconteceu naquele Dia das Mães: 9 de maio de 2021, no Cemitério da Penitência, no Caju, também na zona norte da cidade. Ali, Adriana Santana de Araújo Rodrigues, 46 anos, velou e enterrou o corpo do filho Marlon Santana, assassinado aos 27 anos. Segundo a mãe, Marlon era um menino sonhador, que gostava do empadão e bolo de chocolate. Era o dono do abraço da mãe e uma espécie de psicólogo da família, que era composta por outros dois filhos: um de 19 e outro de 25 anos, o marido e o avô de 80 anos. Em decorrência da série de ameaças que a família vem sofrendo, os familiares não serão identificados.
Adriana conta com orgulho que Marlon já representou o Brasil, em 2010, durante a Copa do Mundo da África do Sul. Tinha apenas 12 anos de idade quando foi selecionado em um sorteio por uma empresa patrocinadora para representar o país no torneio.
“Eu fui mãe solo do Marlon. Ele foi pra África representar esse nosso país e depois foi assassinado pelo Estado. É essa a recompensa. Por quê? Porque era um menino sonhador da favela, um menino que sonhava alto, e aí o Estado o matou”.
Marlon foi o segundo filho que Adriana teve de enterrar em sua vida. Em uma entrevista difícil, na qual as perguntas pareciam cutucar suas feridas, ela falou de sua menina morta após o parto e do sentimento de luto que carrega até hoje. “Primeiro, a negligência médica levou minha filha, e agora o Estado levou outro”.
Marlon foi assassinado durante a ação policial mais letal da história do Estado do Rio de Janeiro, que resultou na morte de 28 pessoas: 27 civis e um policial militar. Segundo a Polícia Civil fluminense, tratava-se da Operação “Exceptis”, que agia contra a organização criminosa que atua na comunidade. “Foram identificados 21 integrantes da quadrilha, todos responsáveis por garantir o domínio territorial da região com utilização de armas de fogo”, apontou a polícia em coletiva de imprensa.
Segundo o Instituto Fogo Cruzado, ao todo 33 pessoas foram baleadas, incluindo duas que foram feridas por bala perdida dentro do metrô. Ainda de acordo com o instituto, considerando as vítimas civis, o massacre ainda é o segundo mais letal já registrado no Estado, ficando atrás do cometido por um grupo de extermínio em 2005 na Baixada Fluminense.
Marlon não era foragido, não estava com mandado de prisão expedido, não era procurado pela polícia. “Se ele estivesse vivo nesse Dias das Mães, estaríamos comemorando como a gente sempre fez. Meu filho não era procurado, por que fizeram o que fizeram? Estava no lugar errado, na hora errada? Levasse ele preso então. Inclusive, eu me importo com a vida do policial, ele tem uma mãe que, assim como, eu está chorando”.
Os corpos de Marlon e de outras seis pessoas foram encontrados naquele cômodo pequeno em um beco no Jacarezinho e, segundo peritos que avaliaram os laudos da necropsia das vítimas, há suspeitas e indícios de fraude processual e execução sumária.
“Isso não foi operação. Chamar isso de operação me ofende. Ali aconteceu uma chacina. Eu entrei na comunidade no outro dia, porque eu não acreditava na morte do meu filho. Na minha cabeça, ele estava baleado esperando eu ir socorrê-lo, então eu gritei pela aquela comunidade toda […] Quando eu entrei lá tinha muitas luvas caídas no chão, que eu creio que foi na hora que eles estavam lá fazendo a barbárie. […] Meu filho foi morto de uma forma trágica, perfuração na cabeça e uma em cada pulmão, além de um tiro no tórax. Ele morreu torturado”, denunciou Adriana.
Por seu posicionamento duro e em busca de justiça, Adriana, além de ser chamada de “mãe barulhenta” por alguns dos policiais do Jacarezinho, tem sido vítima de ameaças e de ondas de fake news que tentam deslegitimar seu luto, relacionando-a com o crime. “Recebo mensagens do tipo ‘mais um CPF cancelado’. O que é esse desrespeito? Eu sou mãe. O meu útero não é de fazer bandido não, o meu útero é como o de todas as mulheres, sendo elas ricas, pobres, negras ou brancas. É uma dádiva ser mãe e todas têm de ser respeitadas, porque uma mãe cria um filho pra vê-lo feliz. Eu tenho dois filhos aqui dentro. Um saiu agora, ele é mecânico, e o outro também já saiu, ele é pedreiro. Eu errei no que pra ser tão desrespeitada e insultada?”.
O questionamento de Adriana, acompanhado da indignação, são forças que a movem a continuar. Ela deseja e luta para que a polícia fluminense, assim como a paulista, passe a usar câmeras em suas fardas. “O que me dá forças pra continuar é que eles [policiais] venham a usar a câmera na farda, porque em São Paulo já usam”.
Uma semana depois da operação policial no Jacarezinho foi aprovado o projeto de lei na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) que obriga o uso de câmaras em uniformes de policiais do Estado. O governo de Cláudio Castro, contudo, não apresentou um cronograma para a instalação dos 21,5 mil dispositivos comprados. Segundo a Secretaria de Estado de Polícia Militar, Jacarezinho e Penha podem ser algumas das primeiras comunidades a serem beneficiadas pelo projeto, ainda não iniciado.
Antes, em 2009, a própria Alerj aprovou a lei 5.588/2009, que determinava a instalação de câmeras em viaturas novas e a colocação gradativa do equipamento nas antigas. A legislação, no entanto, não vem sendo cumprida. “Na favela passamos por humilhações e ninguém acredita em nós. Ninguém. Ninguém acredita! Só acredita se você filmar! E como que você vai filmar uma coisa dessas? Na hora do acontecimento? Como?”, questiona.
O luto no Complexo da Maré
Nossa reportagem buscou conhecer e retratar a história de Adriana, uma mãe da favela, que é certamente a história de tantas outras mulheres deste país, como Bruna Silva, moradora do Complexo da Maré, também no Rio de Janeiro, que entrevistei em agosto de 2018. Na ocasião, Bruna chorava a morte de seu filho Marcus Vinícius, 14 anos, morto no dia 26 de junho daquele ano pela Polícia Civil quando estava a caminho da escola. O uniforme manchado de sangue testemunha. Marcus era estudante da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro.
“Se o meu filho hoje não está aqui é porque ele foi excluído pela Polícia Civil do Rio de Janeiro”, disse Bruna, segurando em suas mãos a camisa suja de sangue do filho morto. “Não houve troca de tiro. O meu filho estava com vida na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e me disse ‘mãe, eu tomei um tiro da polícia’. Essa frase fica se repetindo na minha cabeça. Ele já tinha tomado uma carreira [de tiros] do helicóptero, e se eu soubesse que ele estava debaixo daqueles tiros, eu também estaria morta, porque iria atrás dele. Eles acham que vão matar preto, favelado e vai ficar por isso mesmo, não vai não, porque a gente tem voz”.
Bruna, assim como Adriana, trocou o luto pela luta e se organiza a sua maneira. Bruna tem denunciado a truculência policial nas favelas e por isso também tem sido perseguida. Seu telefone foi grampeado. “Eu tenho medo sim, mas não vou deixar de denunciar, porque isso não pode se repetir com o filho de mais ninguém. Essa dor atingiu meu útero. Minhas lágrimas agora são frias, de luta”.
É o que Adriana faz. Ferida de alma pela violência estatal até agora injustificada, como se algo pudesse justificar a tortura e morte de seu filho, ela continua seu trabalho solidário de ajudar quem menos tem. Neste Dia das Mães, ao recordar o enterro de seu filho, ela – se conseguir doações – irá entregar kits de higiene para mães sem teto e usuárias de drogas.
“Um pente, um sabonete, uma escova, uma sandália. Quero poder levar pra cada mãe lá de baixo do viaduto que é viciada em pedra [crack], sabe? Quero ir lá e dizer ‘olha, você tem filho, se arruma e vai atrás do teu filho, porque o meu eu não posso abraçar mais”.
Segundo dados do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos cinco anos houve 274 chacinas na Grande Rio. Quantas mães irão chorar neste Dia das Mães?
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