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É exatamente sobre enfermos e enfermidades, acolhida e cura, desvelo e compaixão Nossa Senhora de Lourdes e caminhar juntos, que vamos tratar neste artigo, justamente porque vamos (re)conhecer a história do Beato Padre Eustáquio Van Lieshout.2 Antecipamos que, em 2023, fazemos memória dos oitenta anos de sua páscoa definitiva, ocorrida em 30 de agosto de 1943, no então Sanatório Minas Gerais (atual Hospital Alberto Cavalcanti), em Belo Horizonte, capital mineira.
“Quando o sol bater na janela do teu quarto”
Novo sol de outono veio bater em uma janela na cidade holandesa de Aarle-Rixtel, quando, em 3 de novembro de 1890, nasceu Humberto, filho dos camponeses Elizabete e Guilherme. Para entender o quanto o catolicismo estava presente nessa família numerosa, é importante saber que, dos nove filhos, um se tornou sacerdote e três filhas se tornaram religiosas. O menino cresceu na simplicidade do ambiente rural, frequentando a escola e a vida paroquial do lugar. Entre as leituras que o impactaram, estava a biografia de Damião de Molokai (1840-1889), missionário (hoje santo) que dedicou a vida ao cuidado dos hansenianos.
O chamado vocacional veio forte na vida de Humberto, impactado pelo exemplo de quem admirava e para a mesma congregação que aquele missionário pertencia. Aos quinze anos, o adolescente entrou para o seminário menor da Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e Maria e da Adoração Perpétua do Santíssimo Sacramento do Altar, na cidade de Grave, na Holanda. Em 19 de agosto de 1919, pela imposição das mãos de dom Pieterr Adriaan Willen Hopmans (1865-1951), o jovem foi ordenado sacerdote da Igreja Católica; ao fazer seus primeiros votos religiosos, ele assumiu o nome de Eustáquio.
Desde os tempos de neossacerdote, ele se dedicou a cuidar de pessoas em situação vulnerável e a acompanhar de perto o sofrimento humano:
por quase cinco anos, nas proximidades de Roterdã, atendeu os refugiados belgas, expulsos de seu país pela Alemanha no contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A experiência europeia ainda o levaria à Espanha, onde aprendeu o espanhol, pois a Congregação projetava abrir uma missão em terras da América do Sul. Era brincalhão ao dizer que, após ter se empenhado tanto para aprender esse idioma, fora designado para abrir uma missão no único país sul-americano de língua portuguesa.
Padre Eustáquio aportou no Rio de Janeiro no dia 22 de maio de 1925, acompanhado dos padres Gil van den Boogart e Mathias van Rooy. Um mês depois, chegaram ao vilarejo de Água Suja (atualmente município mineiro de Romaria), atendendo a paróquias do atual território da Diocese de Uberaba (MG). Aos poucos, foi acumulando funções: reitor de santuário, responsável por quatro paróquias, conselheiro da Congregação no Brasil. Seu tino de administrador foi sendo testado a cada instante, particularmente no impacto cultural entre a vida do povo simples com mais outros sacerdotes de raiz e cultura europeias que chegaram para ampliar a missão. Ao mesmo tempo, agigantava-se seu modo pastoral de atender as pessoas: sempre acolhedor, cuidadoso, pressuroso em socorrer os enfermos, os empobrecidos, os sofredores de tantas dores. Aos poucos, foi ficando impregnada em sua ação pastoral como que um dístico que o acompanhou por toda a vida: Saúde e Paz. Era o seu empenho desvelar-se para recuperar a paz e a saúde na vida de seus paroquianos.
“Da janela lateral do quarto de dormir”
Havia um prelado que visitava os familiares da região com frequência: dom José Gaspar de Afonseca e Silva (1901-1943), arcebispo de São Paulo. Não tardou para que percebesse em padre Eustáquio o sinal de Deus para quem entregar a paróquia que projetava criar entre São Paulo e Mogi das Cruzes, no então território da arquidiocese. Porém, para isso, era necessário que o sacerdote obedecesse e deixasse o povo que aprendera a amar e que atendeu por quase dez anos. Na ocasião, houve uma revolta popular para impedir que saísse de lá. Na confusão, um paroquiano foi morto. Na missa de exéquias, em um sermão vigoroso, que exaltou o cuidado com a paz e a concórdia que ele mesmo testemunhava, acalmou o ânimo de todos e pôde sair para obedecer ao novo chamado de Deus.
Em 15 de fevereiro de 1935, padre Eustáquio foi empossado Pároco da Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, no então vilarejo de Poá (hoje município paulista). Era vasto o território geográfico sob seus cuidados. Entusiasmado, como era de seu feitio, logo se apaixonou por sua nova paróquia e por seus paroquianos. Certamente atendeu também os hansenianos do Hospital-Colônia de Santo Ângelo (atualmente, Hospital Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti), em Mogi das Cruzes (SP), pois, em um de seus escritos, afirmou: “Aqui encontrei a minha Molokai”, referindo-se à ilha de hansenianos que recebera os dons e cuidados de São Damião, em quem tanto se inspirava.
Logo o sacerdote tratou de construir uma casa paroquial com espaço para atender as pessoas. De uma janela lateral do edifício assobradado, mirava a rua de terra que terminava diante da antiga estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, que atendia ao vilarejo. Não demoraria para que visse, dia a dia, a rua e a igreja, também da janela lateral, apinhadas de uma romaria infinda e permanente. Por sua causa.
Padre Eustáquio era sinal do amor de Jesus que socorria os enfermos e as pessoas em situação de vulnerabilidade diante das mais diferentes misérias que assolam a condição humana.
Amorosamente vinculado a Nossa Senhora, logo construiu uma simples gruta no terreno da igreja para a padroeira da paróquia. Surpreso, percebeu o aumento do número de fiéis que ali se concentravam para rezar. Foi preciso ampliar e melhorar o espaço da caverna. Após uma viagem para a Europa, trouxe de Lourdes um pouco da água da milagrosa Gruta de Massabielle, onde a Virgem Maria apareceu a Santa Bernardette Soubirous (1844-1879), e misturou-a às águas da fonte da gruta da paróquia. Essa ação, somada a seu desvelo para atender os preferidos de Deus, veio unir-se à sua fama de taumaturgo. Muitos atribuíam curas advindas das bênçãos, da presença, da água recebida e benzida, das palavras, que emanavam de padre Eustáquio. Porém, ele acabou se tornando um problema para o poder público e eclesial da região, porque a cidade de Poá não tinha estrutura para suportar esse grande fluxo de pessoas. Por isso, a vila quase colapsou com a quantidade de fiéis que se viam da janela lateral do sobrado subirem pela rua da estação.
Janelas abertas
Para padre Eustáquio, foi determinado fechar a janela do sobrado e se despedir de Poá. Na ocasião, era 13 de maio de 1941. Em todos os lugares, ele foi sendo “escondido”, para que fosse abafada sua fama espalhada pelos jornais e pelo rádio; mas, mesmo assim, muitos iam atrás dele se soubessem de seu paradeiro. Em dois anos, o sacerdote passou por Campos do Jordão (SP), Vila Prudente (na capital paulista), Campinas (SP), Araguari (MG), Romaria (MG), Patrocínio (MG), Rio de Janeiro (RJ), Rio Claro (SP), Ibiá (MG)… nesse período, assumiu o codinome de padre José; tudo para voltar a ser um padre anônimo da roça. Impossível.
Padre Eustáquio concluiu sua trajetória com janelas abertas para Belo Horizonte. Após tantos ires e vires, foi obediente e humilde, trajando suas surradas e remendadas batinas, enfrentando reprimendas e dissabores por parte de confrades e autoridades eclesiais, mas sempre disponível aos enfermos e pobres – para levar Saúde e Paz – quando lhe era permitido; na ocasião, foi acolhido por dom Antônio dos Santos Cabral (1884-1967), na arquidiocese da capital mineira. Durante os atendimentos em lugares insalubres, foi picado por um carrapato contaminado; após agonizar por quase dez dias, descansou em Deus na juventude de seus 53 anos. Ele passou a vida fazendo o bem e arrebatando os corações para Cristo, pela intercessão de São José e de Nossa Senhora, suas particulares e vigorosas devoções. Em 15 de maio de 2006, a Igreja reconheceu-o oficialmente como Beato, em cerimônia presidida por dom Walmor Oliveira de Azevedo (1954-), atual presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no Estádio Governador Magalhães Pinto (Mineirão), em Belo Horizonte.
Janelas abertas. Assim podemos resumir a vida da Testemunha do Reino deste mês. Janelas abertas para amar a Deus. Janelas abertas para os empobrecidos, os enfermos, os sofredores. Janelas abertas para a humildade, a obediência, o atendimento ao chamado vocacional, à missão, às devoções populares. Janelas abertas que vislumbram uma multidão de necessitados do corpo e da alma, ricos e pobres, que anseiam por quem lhes transmita ao menos um pouco do amor misericordioso de Jesus. Janelas, olhos, ouvidos, mentes, corações, braços, pés, abertos e em movimento para acolher os preferidos de Deus. Para o bem deles, a alegria do amantíssimo Beato Padre Eustáquio e a exultação de Cristo, abramos os nossos!
Notas
1 Mensagem de Sua Santidade Papa Francisco para o XXXI Dia Mundial do Doente. Roma, 10 jan. 2023.
Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/sick/documents/20230110-giornata-malato.html#:~:text=Queridos%20irm%C3%A3os%20e%20irm%C3%A3s!,por%20qualquer%20percal%C3%A7o%20no%20percurso. Acesso em: 22 jan. 2023.
2 ANDRADE, José Vicente. Venerável Padre Eustáquio Van Lieshout: missionário da saúde e da paz. Belo Horizonte: Congregação dos Sagrados Corações, 2004.
• Disponível em: https://www.padreeustaquio.com.br/. Acesso em: 22 jan. 2023.
Além da obra e do site citados, foi de grande valia (e recomendamos) a visita ao Museu Beato Padre Eustáquio, localizado na cidade de Poá (SP), proporcionada pelo amigo Vagner Soares. Ela foi monitorada por Delcimar Ferreira, jornalista e coordenador do Grupo de Amigos do Museu. Aqui registramos nossa gratidão e, na pessoa deles, dedicamos o artigo a todos os devotos do referido beato. Para mais informações: @museupadreeustaquio ou (11) 4638-2205.
Errata
Na edição de janeiro/fevereiro de 2023, faltou esta referência, utilizada na elaboração do artigo “Majorino Vibolungo: jovem coração ardente”, da seção Testemunhas do Reino: RECALCATTI, Carlo. Majorino Vigolungo: um jovem apóstolo da comunicação. São Paulo: Paulus, 2018.
Muito bom!