O desafio de buscar a verdade

jun 28, 2023Igreja e Sociedade, Julho-Agosto 2023, Revistas0 Comentários

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Os debates sobre o polêmico Projeto de Lei n. 2630, de 2020 (o “PL das fake news”), independentemente da posição que tomemos a seu respeito, mostra-nos que o problema de “conhecer a verdade” deixou de ser uma discussão apenas filosófica. Todos dizemos estar preocupados com a verdade e acusamos nossos adversários de mentirem ideologicamente, mas o fato é que vai se tornando cada vez mais difícil estabelecer um debate político sério a partir de dados confiáveis e de uma base de informações consensual. Mais do que uma questão de posicionamento ideológico, estamos vivenciando uma perda da percepção da realidade, que alguns chamam de dissonância cognitiva.

A desconfiança sobre os fatos

A polarização ideológica, as disputas ideológicas e a “doutrinação” por mídias e influenciadores não são uma novidade. Havia uma antiga pergunta irônica, comum nos tempos de meus pais: “Será que o jornal que leio pensa como eu, ou sou eu que penso como o jornal que leio?” Contudo, havia uma clara delimitação dos pontos considerados sujeitos ao debate ideológico e uma relativa concordância em relação àqueles nascidos de uma visão de mundo hegemônica e compartilhada.Foto MomentoDaCatequese 03 lateralJulAgos23

Esse cenário se esvaneceu nos últimos anos, no Brasil e em boa parte do mundo. Quando pensamos no “relativismo” denunciado pelo papa Bento XVI (1927-2022), imaginamos principalmente um fenômeno cultural. A relativização da verdade gera o questionamento dos valores morais e a incerteza quanto aos costumes a serem adotados como normas sociais.

Mas o processo que vivemos é muito mais profundo. É um real colapso de todas as evidências que permitem que nos situemos no mundo. Exemplifico…
Minha avó, quando assistiu pela TV às imagens dos astronautas pousando na Lua, em 1969, ficou chocada, pois acreditava que o satélite natural da Terra era só um reflexo no céu, mas nem por isso imaginou que aquela fosse uma fantasia criada pela mídia. Se o mundo inteiro acreditava que aquelas imagens eram reais, ela também acreditaria, por mais que isso a chocasse. Hoje, o terraplanismo apresenta-se como um modelo de pensamento sofisticado, que nega todas as evidências acumuladas ao longo de séculos, criando modelos complexos e improváveis para explicar dados corriqueiros, como as viagens transcontinentais, ou imaginando conspirações gigantescas e pouco críveis para explicar as imagens transmitidas por satélites.
A medicina homeopática sempre desconfiou das vacinas. Os médicos homeopatas, de modo geral, apesar disso, concordavam com o resultado das pesquisas científicas e reconheciam os ganhos objetivos obtidos com a vacinação em massa da população. Contudo, na pandemia de Covid-19, a partir de 2020, vimos uma desconfiança nos próprios dados científicos que orientavam a tomada de decisões dos gestores públicos de saúde com relação às vacinas.

Um terceiro exemplo, mais delicado: os confrontos envolvendo as questões de gênero. As relações afetivas são sempre problemáticas e difíceis. Todos temos de passar por um processo educativo para aprendermos a ser felizes ao lado de outra pessoa, por mais que a desejemos e amemos. É evidente que uma relação homoafetiva, que foge dos padrões convencionais e até da estrutura anatômica e biológica dos parceiros, terá mais dificuldade que as demais. É uma evidência que, por si só, não implica preconceito ou demérito. Hoje, contudo, essa constatação deixou de ser considerada como uma evidência óbvia. Por outro lado, a própria existência de pessoas envolvidas em relacionamentos homoafetivos mostra objetivamente que o sexo biológico não é o único determinante das relações humanas, que o “gênero” condicionado por aspectos sociais e uma história pessoal não é mera construção ideológica. Mas, assim como no caso anterior, essas evidências parecem perdidas para quem se posiciona no outro extremo ideológico, servindo para justificar a discriminação e a perseguição contra pessoas homossexuais.

Seu efeito político

Essa dissolução da consciência da verdade apresenta uma consequência política gravíssima. A política é arte de decisão. A vida política exige que cada pessoa, da mais humilde e subalterna à mais poderosa, tome decisões continuamente sobre o que deve fazer. Ora, a tomada de decisões implica um sistema de orientação que nos diga o que é necessário, possível e desejável – sistema esse que depende do conjunto de informações que consideramos verdadeiras. Se não sabemos o que é verdade ou se nos enganamos quanto ao que é verdadeiro, todo o processo político e social se torna comprometido.

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Nesse nosso tempo, precisamos adquirir um discernimento adequado, que nos ajude tanto a compreender o que é a verdade quanto a relativizar aquilo que é posição particular, opinião e discussão

Por exemplo, a insegurança alimentar afeta atualmente cerca de 60% da população brasileira. É o problema crônico da pobreza, que não foi vencido estruturalmente nas últimas décadas. No passado, ninguém, fosse de direita ou fosse de esquerda, questionaria o dado de que grande parte da população brasileira é pobre – mas hoje essa informação das pesquisas é contestada por muitos. Assim, fica um questionamento: como ter uma política adequada de combate à pobreza se a própria dimensão da pobreza não é consensual?

Por isso, a perda da consciência da verdade torna-se o maior desafio político de nosso tempo. Os enfrentamentos de todos os demais problemas estão comprometidos por essa perda original. Quanto menor for nosso compromisso com a verdade, mais fácil é a manipulação de nossas consciências, menor é a liberdade pessoal e mais difícil é o enfrentamento dos problemas materiais.

 

Como chegamos a isso?

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que se trata de um longo processo que acompanha toda a cultura moderna – e que de certa forma faz parte do espírito humano. É sempre mais fácil denunciar o mal do que construir o bem. Ao longo da história da modernidade, desenvolvemos muito mais a crítica destrutiva do que a construção propositiva. Aprendemos facilmente a descobrir o erro em todas as partes, e isso gerou uma visão cética do mundo, para a qual todos os valores são construções ideológicas e toda a verdade é apenas narrativa hegemônica.

Mas, em um período recente, a chamada “sociedade do espetáculo”, na qual tudo parece se resumir a aparência e fantasia, aprendeu também a explorar os ressentimentos, as mágoas e as dores das pessoas, canalizando a raiva, o medo e a impotência, para que se tornassem instrumentos de convencimento. Dizer para as pessoas aquilo que elas querem ouvir permite incorporar, no meio do discurso, também ideias falsas – que parecerão cada vez mais prováveis e acertadas para um público sedento de autoafirmação e desforra contra um contexto que lhe prometeu uma felicidade que não foi entregue.

São tempos em que se procura identificar os “inimigos” e culpá-los por tudo o que acontece de errado. Quando esse “inimigo” não está claramente à vista, ele é “construído” ideologicamente, para poder ser usado no jogo político. Grande parte dos colunistas mais aclamados e dos influenciadores com mais seguidores nas redes sociais são haters (pessoas que odeiam, que estimulam o ódio). Quanto mais as pessoas percebem sua dignidade aviltada e se consideram traídas por seus dirigentes, mais o clima de raiva se espalha pela população – levando cada um a procurar uma forma de extravasar seus ressentimentos.

O Inimigo que está dentro de nós

“[…] O que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior […]. É de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassinatos, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas estas coisas más saem de dentro e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7,15.21-23). Não percebemos que frequentemente são nossas paixões interiores que nos expõem a influências e dominações ideológicas, que fazem de nós presas fáceis das armadilhas das redes sociais e das fake news.

Os Padres do Deserto, monges e eremitas dos primeiros séculos do cristianismo, falavam sobre os logismoi (λογισμοί) – pensamentos impuros, pulsões, que nos afastam de Deus. São correlacionados aos pecados capitais do Catolicismo Romano atual, mas os Padres do Deserto, como Evágrio Pôntico (345-399), insistiam que a luta contra os logismoi era uma batalha interior, pois o demônio se aninha, em primeiro lugar, dentro de nós.

Como o cristianismo enfrenta essa situação?

Nesse nosso tempo, precisamos adquirir um discernimento adequado, que nos ajude tanto a compreender o que é a verdade quanto a relativizar aquilo que é posição particular, opinião e discussão. Frequentemente, as próprias comunidades cristãs tornam-se reprodutoras de ideias falsas e ideologias porque se comportam de modo fideísta, acreditando que uma informação é verdadeira simplesmente porque está sendo apresentada por alguém que é referência religiosa. Mas o fato de alguém ser mais maduro espiritualmente ou ter nos ajudado em uma dificuldade não implica que entenda mais de economia, que tenha de fato informações privilegiadas sobre pesquisas científicas – ou até mesmo que não queira nos manipular!
Além disso, precisamos orientar nossa reflexão para uma crítica propositiva, que nos auxilie a superar os problemas em vez de apenas denunciar os erros. Ressalta-se que a denúncia sem proposições adequadas leva ao ceticismo, como já ocorreu no passado, ao florescimento de ideologias descabidas e à manipulação das consciências.

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