Contos de Natal em família

nov 30, 2022Dezembro 2022, Revistas, Theoblog3 Comentários

O tempo de Natal é sempre repleto de magia, amor e esperança.
Há algo diferente no ar que mexe com a vida comum e altera os sentimentos e as percepções. Algo muda, pois todas as pessoas parecem grávidas de vida nova. Ao narrar os contos, nós nos tornamos personagens da beleza natalina em nossas famílias. Neste artigo, quero contar alguns contos de Natal vivenciados em minha vida familiar.

Em primeiro lugar, recordo, com forte emoção, os oito anos em que vivi no Bairro de São Mateus, na Zona Leste paulistana, entre 1984 e 1992. Nessa ocasião, em quase todas as manhãs próximas ao Natal, os padres Dervile Alonço (1949-2022), José Bello dos Santos (1950-1994), Valter Luís Lara e eu recebíamos, na pequena casa paroquial, a visita frequente de Antônio Sanchez, um catador de papel que vivia pelas ruas, de maneira paupérrima e sempre participava das missas e das celebrações solenes de Natal e Páscoa. Vinha cedo, quase de madrugada, batendo forte na porta ou gritando pela janela da sala, para pedir um café, um pão-doce ou um pão com manteiga! Às vezes, para brincar, perguntávamos como se não soubéssemos de sua presença e voz inconfundível: “Quem está aí?” Ele respondia, bem alto e firme: “Sou Antônio Sanchez, da mesma família de vocês quatro. Sei que aí dentro moram Dervile Sanchez, José Bello Sanchez, Valter Sanchez e Fernando Sanchez”. De maneira direta, ele nos fazia seus parentes de sangue, com o mesmo sobrenome Sanchez! Esse Antônio entendia o significado de Emanuel-Deus Conosco.

Em tempo das festas pascais, voltava o “nosso assumido parente” Antônio Sanchez, com a roupa suja e rasgada, mostrando as chagas por todo o corpo, e uma fé inabalável mesclada da loucura de um viver padecente. Nunca faltou à cerimônia do Sábado de Aleluia, e, quando um dos padres entrava na Igreja totalmente às escuras, portando o Círio Pascal e cantando solenemente por três vezes: “Eis a luz de Cristo!”, antes que o povo pudesse responder o clássico: “Demos graças a Deus!”, ele dizia com voz estrondosa que vencia a todos: “Viva a festa!” Esse Antônio, pobre e santo, compreendia a seu modo a profunda conexão entre a Páscoa e o Natal. Agora se torna o evento central daquele Jesus que ressuscita em Jerusalém como uma vida criada e (agora) recriada. Vida gestada e restaurada pelo Amor. Natal é festa. Páscoa é festa dupla.

Um segundo conto de Natal eu vivi em minha infância, com meus familiares espanhóis e alemães. Do lado espanhol, era comum cantarmos as cantigas de Natal, conhecidas como “villancicos”, particularmente uma que até hoje me emociona muito: El tamborilero (‘O menino do tambor’). Diz a letra poética: ”O caminho que leva a Belém, desce o vale que a neve cobriu, e os pastorzinhos querem ver ao seu rei, trazem presentes em suas humildes sacolas. Eu quisera pôr aos teus pés um presente que te agrade, Senhor! Mas tu sabes que sou pobre também, e que só possuo um velho tambor! Roponponpon, roponponpon! E em tua honra, frente ao portal, tocarei o meu tambor. Vou marcando o caminho que leva a Belém com o meu velho tambor, e nada melhor há que eu te possa ofertar que este ronco acento, que é um canto de amor. Quando Deus me viu tocando diante dele, sorriu! Roponponpon, roponponpon!”1 Do lado alemão, as festas de Natal mesclavam as músicas tradicionais alemãs, como Stille Nacht (‘Noite Silenciosa’)2 ou O Tannenbaum (‘Pinheiro de Natal’)3, e a abertura das portinhas de papel, de um calendário da minha avó polonesa, entre os dias 1o e 25 de dezembro. Tempo alegre de expectativa na vida familiar. Ansiedade saudável.

conto

El tamborilero, Shad Nowicki

Um terceiro conto de Natal, dramático e pleno de emoção, fui aprender, no colo de minha avó Dolores Muller Delgado (1897-1986), a história real de sua fuga da ocupação russa, da cidade de Leipzig, guiando as quatro filhas (entre elas minha mãe, Carmen), no Natal de 1946, atravessando a pé a fronteira russo-americana em Wartha, entre a Alemanha Oriental e a Ocidental. As cinco mulheres de minha família saíram em direção de Frankfurt, em 11 de dezembro de 1946, de trem, de Halle, Erfurt e Wartha. Partiram de madrugada, sem falar com vizinhos e amigos. Temiam ser deportadas para a Sibéria por ordem do regime soviético. Precisavam percorrer 450 quilômetros de Leipzig a Frankfurt, mas o drama seria passar ilesas e de forma secreta pela fronteira vigiada pelo Exército russo de ocupação. Ao chegarem a Wartha, do lado russo, saltaram do trem e caminharam pela linha férrea e pelos bosques na neve, buscando cruzar a fronteira em silêncio. Seguiram pela margem direita do Rio Werra e, ao sentirem a presença da Virgem Santíssima, cruzaram a fronteira todas de joelhos, passo a passo, sem que os guardas russos pudessem vê-las ou ouvi-las, em meio da neblina e da nevasca.

Parecia que estavam dormindo nas guaritas. Verdadeiro milagre, segundo minha avó contava, emocionada, dezenas de vezes para mim, que ouvia extasiado a tal aventura libertadora. Assim chegaram extenuadas ao lado ocidental, em Herleshäusen, sendo conduzidas pelas tropas americanas para Frankfurt, para viverem em um bunker como refugiadas até março de 1947, quando voltaram para a Espanha, onde nasceram, e depois emigraram ao Brasil, onde vivem desde 1949. O Natal de 1946 foi vivido com refugiadas espanholas, judias e alemãs do leste. Minha mãe Carmen e sua irmã Mercedes reuniram poesias no bunker de suas bunkerfreudin (‘amigas do bunker’). Entre elas, encontrei uma, escrita no Advento de 1946: “Mit Gott fang´an, mit Gott hör´auf, Das ist der Schönste Lebenslauf” (‘Comece com Deus, termine com Deus, esse é o trajeto de vida mais bonito’). Em momentos de tanta perseguição, foi na fé em Deus e na poesia que elas se mantiveram firmes. Essa é a magia do Natal.

Este é o segredo maior do Natal: reconhecer na criatura humana um irmão ou irmã. Amar e permitir-se ser amado! Compreender-se irmão ou irmã universal.

Um quarto conto natalino eu li quando fiz estudos de doutorado na Bélgica, entre 1992 e 1994. Era a inacreditável meditação de Natal escrita pelo filósofo ateu Jean-Paul Sartre (1905-1980). Muito me impressionou a mensagem que compartilho em português. Era 1940, na Alemanha, em um campo de prisioneiros franceses. Alguns padres pediram que Sartre, recluso havia alguns meses com eles, redigisse uma pequena meditação para a véspera de Natal. Ele aceitou o pedido. Ofereceu aos camaradas de prisão, que ele denominava de “Barjonás ou filhos do trovão”, uma reflexão que procurava unir crentes e não crentes. Escreveu Sartre: “Como hoje é Natal, tendes o direito de exigir que vos seja mostrado o presépio. Ei-lo. Eis a Virgem, eis José e eis o Menino Jesus. O artista colocou todo o seu amor neste desenho, mas vós talvez o considereis ingénuo. Vede, as personagens têm belos ornamentos, mas estão rígidas, dir-se-ia que são marionetes. Não eram certamente assim. Se fordes como eu, que tenho os olhos fechados… Mas escutai: só tendes de fechar os olhos para me ouvir e eu vos direi como os vejo dentro de mim. A Virgem está pálida e observa o Menino. O que falta pintar no seu rosto é uma maravilha ansiosa, que só aparece uma única vez numa figura humana. Pois Cristo é o seu filho, a carne da sua carne e o fruto das suas entranhas. Ela carregou-o nove meses e dar-lhe-á o seio e o seu leite tornar-se-á o sangue de Deus. E em certos momentos a tentação é tão forte que esquece que é Deus. Ela aperta-o nos seus braços e diz: Meu pequeno! Mas noutros momentos permanece perturbada e pensa: Deus está ali, e sente-se tomada por um horror religioso por este Deus mudo, por este menino terrificante. Pois todas as mães se detêm por instantes diante desse fragmento rebelde da sua carne que é o seu filho e sentem-se exiladas diante dessa nova vida que foi feita com a sua vida e que povoam de pensamentos estranhos. Mas nenhum filho foi mais cruelmente e mais rapidamente arrancado da sua mãe, porque Ele é Deus e está além de tudo o que ela pode imaginar. E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si e da sua condição humana diante do seu filho. Mas penso que deve ter havido outros momentos, rápidos e escorregadiços, nos quais sente ao mesmo tempo que o Cristo é seu filho, o seu pequeno, e que é Deus. Ela observa-o e pensa: Este Deus é meu filho! Esta carne divina é a minha carne. É feito de mim, tem os meus olhos e esta forma da sua boca é a forma da minha. Parece-se comigo. É Deus e se parece comigo. E nenhuma mulher teve da sorte o seu Deus só para si. Um Deus pequenino que se pode tomar nos braços e cobrir de beijos, um Deus quente que sorri e respira um Deus que se pode tocar e que vive. E é nesses momentos que eu pintaria Maria, se eu fosse pintor, e tentaria representar a expressão de terna audácia e de timidez com a qual ela avança o dedo para tocar a doce pelezinha deste Menino-Deus, de quem sente sobre os joelhos o peso morno e que lhe sorri. E eis tudo para Jesus e para a Virgem Maria. E José? José não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra ao fundo da granja e dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de José e José não sabe o que dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e sente-se um pouco em exílio. Creio que sofre sem o admitir. Sofre porque vê o quanto a mulher que ama se parece com Deus, o quanto ela já está perto de Deus. Pois Deus rebentou como uma bomba na intimidade dessa família. José e Maria estão separados para sempre por esse incêndio de claridade. E toda a vida de José, imagino, será para aprender a aceitar isso”.4

O derradeiro conto natalino foi-me indicado por meu tio judeu, Julius Vajda (1924-2019), sobrevivente do Holocausto, que o havia lido de padre Tomáš Halík. (1948-). É uma antiga história do hassidismo: “Rabi Pinchas pergunta a seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia. ‘É o momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carneiro?’, pergunta um de seus discípulos. ‘Não’, responde o rabi. ‘É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira de uma figueira?’, pergunta o segundo. ‘Não, também não é esse momento’, replica o rabi. ‘Então, quando chega a manhã?’, perguntam os discípulos. ‘É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão ou nossa irmã’, replica o rabi Pinchas. E conclui: ‘Enquanto não o conseguirmos, continua a ser noite’”.5 Este é o segredo maior do Natal: reconhecer na criatura humana um irmão ou irmã. Amar e permitir-se ser amado! Compreender-se irmão ou irmã universal.

Notas

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AQbMT7FbEsk. Acesso em: nov. 2022.
2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4puLybRGSAw. Acesso em: nov. 2022.
3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lS4wTuvR7Ik. Acesso em: nov. 2022.
4 Disponível em: https://leonardoboff.org/2020/12/26/sartre-prisioneiro-de-guerracomovente-texto-sobre-o-natal/. Acesso em: nov. 2022.
5 HALÍK, Tomáš. A noite do confessor: a fé cristã numa era de incerteza. Petrópolis: Vozes, 2016. p. 198.

Autor

3 Comentários

  1. clemoco48

    Lindos contos de Natal!

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  2. Fernando Altemeyer Junior

    Espero que o texto possa inspirar outros a contarem os contos de Natal de suas famílias e povos. Feliz Natal.

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  3. Marcus antonio lombardi

    Lindo.

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