Recentemente, foi-me solicitada uma palestra com o tema deste artigo… De fato, algumas vezes, parece-nos que a família deixou de ser um valor para as pessoas – ou que ela foi tão relativizada que não conseguimos mais encontrar uma verdadeira família naquilo que está sendo denominado dessa forma. Contudo, se observamos com cuidado e carinho, podemos observar que a imensa maioria das pessoas continua desejando ardentemente uma família – mesmo que testando os mais diversos arranjos familiares, em uma tentativa sincera de encontrar qual seria a “família ideal” para cada pessoa.
Todo ser humano tem, inscrita em seu coração, a exigência de ser amado. Não é possível ser feliz sem ser amado (mesmo que alguns se esforcem para substituir o amor pelo poder ou pela riqueza). A família é o espaço natural em que se desenvolve esse amor. Por isso, permanecerá sempre um valor para todos os seres humanos – mesmo que alguns se esforcem em negar sua necessidade. Não estão se contrapondo à família como tal, mas, não tendo encontrado aquela “família ideal” que os realizaria, consideram que provavelmente todas as famílias são ruins…
Em alguma medida, ao longo da história, sempre houve aqueles que não se adequavam a suas famílias (e, muitas vezes, porque vinham realmente de lares horríveis), mas dois fatores mudaram radicalmente o cenário em nossos tempos: a crítica às contradições de nossa sociedade e o reconhecimento da universalidade do direito à felicidade.
Aqueles que aprenderam a duvidar de seus valores
A maior parte das sociedades tende a apresentar suas normas e suas instituições como perfeitas, considerando os desajustados como os “errados”, aqueles que precisam ser corrigidos e enquadrados para não causarem mal a todos. Nossa sociedade, ao contrário, aprendeu a se autocriticar, a duvidar de seus valores e a olhar os desajustados não como “errados”, mas sim como vítimas das injustiças da estrutura social. Observamos que as promessas e os valores sociais frequentemente encobriam a hipocrisia, a prepotência e o egoísmo. Percebemos que a vida em sociedade implica uma série de limitações, normas e deveres que não nos fazem mais felizes, mesmo que reconheçamos que são necessários para a coexistência entre nós.
O progresso tecnológico e o desenvolvimento socioeconômico melhoraram muito as condições da vida material, mas também intensificaram a pressão psicológica sobre as pessoas. Estamos cada vez mais estressados, inseguros e inquietos. As ilhas de prosperidade e qualidade de vida estão rodeadas por mares de dificuldades sociais e injustiças dolorosas. O individualismo não é apenas uma mentalidade criada ideologicamente, mas uma consequência de um modo de viver que isola as pessoas e as torna estranhas umas às outras.
Tudo isso nos faz cada vez mais desejosos de uma família que nos acolha, na qual possamos ser amados e amar, que nos dê segurança ao longo das intempéries da vida − mesmo que a busquemos em arranjos familiares pouco convencionais. Ao mesmo tempo, contudo, temos cada vez mais consciência dos limites e dos desafios que muitas famílias estão enfrentando. A dificuldade de realizar um ideal de família, o amargo reconhecimento de enormes violências, frustrações e abandonos que acontecem em tantos lares, o desgaste psicológico e a desorientação diante dos desafios e dos fracassos levam ao seguinte questionamento: não será ela um valor real, mas inalcançável; uma armadilha ideológica para nos dominar e não para nos fazer felizes?
Não estamos, de fato, diante da negação do valor dos laços familiares; mas, sim, perante uma rebelião contra a hipocrisia e os fracassos daqueles que defendiam seu valor, contudo sem viver segundo esse valor e sem amar de forma sábia aos demais. Tais problemas sempre ocorreram, mas, atualmente, as pessoas manifestam sua indignação e seu desalento com mais força.
O problema nos debates sociais é que nos deixamos determinar por um confronto “nós” contra “eles”, em que ambos os lados acabam não trabalhando para construir esses espaços de realização afetiva e pessoal. Uns, ao defender a família de forma acrítica, não percebem que estão defendendo situações e comportamentos de desamor com os quais não concordam. Outros, ao atacarem de forma indiscriminada, não entendem que estão deixando de aderir àquilo que realmente mais desejam: um lugar em que possam ser amados e acolhidos incondicionalmente.
Um desejo justo que (algumas vezes) acaba atrapalhando…
A felicidade sempre foi considerada um bem árduo, que exigia esforço e abnegação para ser alcançado. Muitos não eram totalmente infelizes, mas poucos totalmente felizes nesse nosso “vale de lágrimas”. Hoje em dia, porém, todos nos sentimos com o direito a sermos felizes. A infelicidade é mais que uma condição inerente à vida: é uma derrota, uma espécie de maldição ou a constatação de algum grande pecado. Os infelizes são como os hansenianos do Novo Testamento. Basta ver a infinidade de postagens alegres e felizes que inundam nossas redes sociais: ninguém quer reconhecer que tem momentos tristes…
Sendo assim, todos esperamos encontrar outros que nos façam felizes, dando-nos amor. Um amor imperfeito, que nos deixa infelizes, é indesculpável. Na prática, acreditamos que o outro tem obrigação de aceitar-nos como somos, gratuitamente, sem exigir nossa perfeição – mas nós mesmos esperamos que o outro nos brinde com um amor o mais próximo possível da perfeição; além disso, não estamos dispostos a perdoá-lo e acolhê-lo com suas limitações e seus erros.
Fomos deseducados à doação e à aceitação dos limites alheios. No passado, as pessoas pareciam ignorar os maiores pecados dos integrantes de seu grupo social e negar até a humanidade do estrangeiro. Hoje, muitos se dedicam e defendem os direitos dos refugiados e dos imigrantes, daqueles que são diferentes deles, mas não são capazes de perdoar e acolher aquele que está mais próximo…
Mas a família é o grande espaço da aceitação, da gratuidade e do dom de si mesmo ao outro. Se cada um espera do outro algo que não está disposto a dar, essa relação não pode funcionar bem, não pode corresponder aos desejos de nosso coração…
É interessante observar o que aconteceu, nesse contexto, com os estereótipos do masculino e do feminino. Antes, o homem era visto como o provedor dominante, aquele que mandava e era obedecido, enquanto a mulher seria aquela que se doava e criava o ambiente afetivo para toda a família. O masculino tendia a ser forte, mas egoísta, o feminino, submisso, mas afetivo. Nos tempos atuais, a crítica ao modelo tradicional, antes de exigir que os homens fossem capazes de um amor mais maduro, de entrega, doação e fidelidade, exortou as mulheres a assumirem uma postura autocentrada e independente. Não o crescimento mútuo em uma virtude que constrói a família, mas a adoção de uma postura individualista que destrói as relações. Desse jeito, é até surpreendente que possa dar certo em muitos casos…
Três pontos de atenção
Todo ser humano é um mistério insondável para os demais – e até para si mesmo. Um mistério ciosamente criado e guardado no coração de Deus. Como poderíamos nos atrever a saber o que faz alguns casamentos darem certo, contra todas as expectativas, e outros darem errado, também contra todas as expectativas? Esse é outro mistério oculto no coração de Deus. A vida da Igreja ensina-nos, contudo, algumas lições que podem ajudar a estabelecer uma família harmoniosa.
Em primeiro lugar, está algo até óbvio: a oração e o pedido. Deus acompanha-nos, mas é extremamente respeitoso para com nossa liberdade. Ele não age onde Sua ação não é desejada, onde Sua companhia não é buscada. Aqui, é fundamental a oração sincera, que nasce do coração, que não se importa de ser feita do jeito certo ou errado, pois é fruto de um desejo incondicional de contar com a companhia do Senhor.
Depois, há a companhia. O maior drama das famílias atuais é sua solidão objetiva. No mundo de hoje, a maioria delas vive sozinha, mas precisa muito de uma boa companhia – e não só nos momentos difíceis. Qualquer companhia sincera e estável (como o grupo de famílias que se reúne nos fins de semana para se divertir juntos) já é algo positivo, mas o ideal é que isso seja reflexo da sabedoria de um povo. Alguém que saiba acolher e aconselhar quando necessário, em que adultos e jovens encontrem um espaço de convivência e de apoio mútuo. A Igreja pode assumir esse protagonismo à medida que é não apenas aquela pequena comunidade que se encontra na paróquia ou no movimento, mas todo o conjunto de comunidades que se espalham no mundo, inclusive aquelas que já se foram, mas que – com seu testemunho – iluminam nossa vida até hoje.
Por último, é importante a atenção ao diálogo entre a liberdade de Deus e nossa liberdade individual. Deus é livre e nos criou dessa forma. Sua liberdade está sempre em diálogo com a nossa. Ele está sempre nos acolhendo e nos oferecendo uma resposta para nossas angústias e nossas necessidades. Mas precisamos saber ouvi-Lo, pois Suas palavras nem sempre correspondem exatamente a nossas expectativas. Pensem, por exemplo, no caso de uma família cujo filho passa a consumir substâncias psicoativas e se torna um dependente químico, perdendo todas as suas oportunidades – mas um dia se converte, supera essa condição e se transforma em um grande evangelizador que ajuda dezenas de outros dependentes como ele. Sem dúvida, esse não era o caminho que os pais desejavam… Mas pode ser uma via de santidade em que ele fará coisas maravilhosas, alcançando felicidade e plenitude de vida.
Assim são as coisas de Deus − e a família é um grande dom de Deus −, mas precisamos estar atentos para acolhê-las e propiciá-las, ou acabamos dificultando Sua ação, em vez de nos moldarmos a Seu desejoso amoroso para conosco.
0 comentários