Ao longe, é possível ouvir os cantos e o som da viola caiçara, da rabeca e a batida do tambor marcando o ritmo, enchendo o ar de uma paróquia de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. O mastro com a bandeira do Divino aponta para o céu, e os fiéis fazem um sinal de reverência e respeito. É o grupo de foliões que se aproxima para mais um dia de cantoria, danças e orações em homenagem ao Divino Espírito Santo, festa centenária que, ainda hoje, se mantém viva em várias partes do Brasil.
Com o término da Quaresma, Mario Ricardo de Oliveira sabe que é o momento de tirar o pó de sua rabeca e começar a se preparar para mais um ano de procissão da Festa do Divino Espírito Santo (ou Folia do Divino), tradição católica centenária que chegou ao Brasil (trazida pelos colonizadores portugueses) ainda no período colonial.
Ele é morador de Ubatuba, município localizado no litoral norte de São Paulo que tem dois grupos da Festa do Divino. Sua relação com o festejo teve início ainda na infância, quando acompanhava as procissões com os tios durante as visitas dos foliões nas casas dos fiéis.
O grupo que o folião acompanhava não tinha um rabequista há vários anos. No entanto, por intermédio dos ensinamentos de mestre Ricardo Pereira Nunes, Oliveira aprendeu a construir e tocar o instrumento, que é uma espécie de violino medieval. “As primeiras notas eu aprendi olhando o mestre Ricardo. Agora são vinte anos participando da Festa do Divino e hoje, se precisar, também posso tocar a viola”, enfatiza.
No Sábado de Aleluia, ele se reúne com outros foliões para a primeira procissão em homenagem ao Espírito Santo. São três meses de romaria e visitas às casas de fiéis levando a bandeira do Divino, sempre com orações e músicas que celebram e mantêm viva a fé do povo.
Dados históricos
Essa manifestação popular teve origem por volta do século XIV, em Alenquer, Portugal, quando a rainha Isabel de Aragão (1271-1336), presenciando conflitos entre seu esposo, o rei dom Diniz (1279-1325), e um dos filhos ilegítimos do soberano sobre a sucessão do trono português, fez uma promessa: se a paz se estabelecesse, a rainha doaria sua coroa em benefício dos pobres e construiria uma Igreja em homenagem ao Divino Espírito Santo.
Essa ocasião marca a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, cinquenta dias após a Páscoa. A festa simboliza, dessa forma, o começo de uma nova era marcada pela prosperidade, pela bondade, pela igualdade e pela fraternidade, entre outros valores cristãos
Após a soberana alcançar a graça, a coroa foi doada e utilizada para angariar mais donativos às pessoas carentes, no dia em que a Igreja celebra o Pentecostes (derivado do vocábulo grego pentekoste, que significa ‘quinquagésimo’). Essa ocasião marca a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos, cinquenta dias após a Páscoa. A festa simboliza, dessa forma, o começo de uma nova era marcada pela prosperidade, pela bondade, pela igualdade e pela fraternidade, entre outros valores cristãos.
O festejo tornou-se tradicional em seu país de origem, Portugal, sendo trazido ao Brasil com os primeiros colonizadores, a partir de 1500. Segundo dados históricos, a festa chegou a Ubatuba ainda no período de colonização. Ressalta-se que o catolicismo sempre teve presença marcante na região caiçara, pois foi nas areias da Praia do Cruzeiro que São José de Anchieta (1534-1597) escreveu o célebre “Poema à Virgem”.
O município localiza-se na Mesorregião do Vale do Paraíba e na Microrregião de Caraguatatuba. Entre os dias 9 e 19 de maio, a Paróquia Exaltação da Santa Cruz realiza a 158a Festa do Divino, que conta com a participação de devotos e cristãos de diversas cidades do Estado e de outras regiões do Brasil.
Porém, em Ubatuba, a celebração de Pentecostes é realizada em julho e não em maio, como no restante da comunidade católica. Sobre isso, há duas explicações: de acordo com a primeira versão, no mês de maio, os pescadores estavam em alto-mar garantindo o alimento das famílias e não podiam participar da festa. Já a segunda variante é que um famoso empresário de Taubaté (SP) foi convidado a participar da festa. Porém, ele impôs como condição para aceitar a proposta que o festejo ocorresse em julho, para que seus funcionários também pudessem ir ao evento. Desse modo, a partir de 1950, a celebração passou a ser realizada no mês de julho, com a anuência do bispo da região.
Tradição transmitida entre gerações
Ser um folião ou mesmo receber os participantes em casa é uma tradição que ultrapassa gerações. “O fato de chegar à casa das pessoas e presenciar sentimentos como fé, alegria, devoção é algo contagiante. Isso nos dá ânimo para seguir em frente com esse trabalho”, enfatiza Oliveira.
A fé da população na Festa do Divino é tão intensa que há relatos de pescadores que pediram pela melhora na pesca na região e alcançaram essa graça. “Esse é apenas uma das centenas de graças que compartilham conosco. Isso nos dá mais força para seguir em frente com essa comemoração”, ressalta.
Quem já foi anfitrião da festa afirma que não há emoção maior. É o caso do diácono Isaías Amorin, que há mais de trinta anos acompanha a Festa do Divino, na Paróquia Exaltação da Santa Cruz, em Ubatuba. “É muito gratificante, pois é pela fé dos foliões que recebemos a presença viva do Espírito Santo”.
Amorim explica que o festejo representa o poder do Espírito Santo, considerando a relação com o Deus Trino – Pai, Filho e Espírito Santo. Na opinião do diácono, isso nos torna verdadeiros cristãos, conduzidos pela fé, buscando o fortalecimento do espírito com amor, paz, bondade, mansidão e os dons da sabedoria, entendimento, piedade e temor a Deus.
Símbolos e significados
A Festa do Divino é repleta de símbolos e significados. No entanto, o mais lembrado pelos fiéis é a bandeira com a pomba branca e a coroa de flores, que simbolizam as bênçãos derramadas pelo Espírito Santo sobre as pessoas. Também estão as fitas que ornamentam o mastro da bandeira e os instrumentos, que representam os pedidos de cada um dos seguidores do festejo.
No alto do mastro da bandeira, os foliões levam uma pomba, que peregrina de casa em casa. “Esses são objetos de devoção e muito respeito para as pessoas que recebem a festa em suas residências”, explica Rogério Estevenel, historiador e pesquisador de cultura popular. A comemoração conta ainda com o Império, representado por uma capela em que são depositadas as peças alusivas à festa.
Um dos momentos mais aguardados pelos fiéis é o hasteamento da bandeira do Divino, colocada na ponta de um mastro decorado com fitas vermelhas e brancas. A ideia é mostrar a todos os participantes que aquele espaço, durante um período, será dedicado ao Divino Espírito Santo. “Ao levantar esse mastro, tem início a festa, e aquele local será dedicado a orações e congraçamentos das pessoas”, diz o pesquisador.
Os grupos são compostos por, no mínimo, seis integrantes, sendo dois mestres violeiros, um mestre rabequista, um caixeiro e um mestre para tocar machete (espécie de viola de dez cordas utilizada principalmente no samba de roda do Recôncavo Baiano). O festejo pode contar também com um personagem da realeza (que geralmente é representado por uma criança), simbolizando a rainha de Portugal, dona Isabel. “Esse personagem é responsável por ter as mesmas atitudes bondosas que a rainha teve: dar alimentos aos pobres. Algumas festas têm doações de doces e prendas que depois são utilizadas em outras festas da paróquia. É importante lembrar que em Ubatuba há dois grupos da Festa do Divino”, ressalta Estevenel.
Durante as peregrinações, os mestres entoam músicas que remetem ao Divino Espírito Santo e a devoção a Maria, além das cantorias de improviso que muito se assemelha ao repente nordestino. Nesse caso, o mestre da festa pode fazer um verso agradecendo pelo alimento diário, e os contramestres reproduzem o que é versado.
Entre as músicas tradicionais entoadas, estão “Bendito do Rosário de Maria”, “A Bandeira do Divino” e “Martírio de Cristo” (que traz todos os detalhes do flagelo de Jesus, tornando-se uma pequena catequese). “É importante lembrar que as Festas do Divino também serviam para transmitir às pessoas a doutrina da Igreja Católica, principalmente para uma população que, no passado, não tinha acesso à educação”, explica o pesquisador.
Os festejos sempre ocorrem durante o dia. À noite, acontece o “pouso”, quando a bandeira é guardada na casa que recebe o grupo. Nesse momento, as violas e as rabecas animam os bailes de fandango, com a famosa dança de bate pé. “No momento sagrado, durante o dia, faz-se a devoção ao Divino e, à noite, ocorre a dança profana do fandango”, explica Estevenel.
Patrimônio cultural imaterial do Brasil
A Festa do Divino Espírito Santo pode ser considerada um bem cultural de Patrimônio Imaterial do Brasil. Atualmente, os grupos das cidades de Pirenópolis (GO) e Paraty (RJ) têm suas celebrações reconhecidas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Já a festa realizada na vila rural de Marmelada, no extremo sul do Piauí, está em processo de tombamento.
Segundo Rodrigo Martins Ramassote, chefe da Divisão de Revalidação do Departamento de Patrimônio Imaterial, esse reconhecimento significa que o governo federal fará ações de fomento da festa, ajudando-a a manter-se viva. “Exposições de fotos, construção de acervos e oficinas estão entre as ações realizadas nas localidades que foram reconhecidas”, acrescenta.
Ele explica que o reconhecimento por parte do Iphan é um processo demorado, que requer um minucioso trabalho de pesquisa e o envolvimento de toda a comunidade interessada. “Hoje os próprios grupos nos procuram para esse vínculo com o Estado, algo que não acontecia anteriormente. Isso pode facilitar o trâmite”, finaliza.
Celebrada em maio ou julho, tombada ou não, a Festa do Divino Espírito Santo segue presente em várias partes do País. Nesses momentos, a dedicação dos foliões é tão intensa, que todas as pessoas são contagiadas pelas músicas, pelas orações e pelas demonstrações de fé. Isso significa que, ainda hoje, a fé popular não reconhece limites de tempo nem de espaço para manter viva suas tradições.
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