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Em um país de maioria católica, como o Brasil, a identidade católica tradicionalmente parecia ser “o normal”. Quem não era católico era visto como diferente, errado ou primitivo (no caso dos indígenas e dos escravizados negros).
No Brasil atual, o catolicismo perdeu sua posição de hegemonia incontestável e está sofrendo por essa situação anterior.
Os fiéis não estavam preparados para o debate cultural que têm de travar. Tanto nas instâncias nas quais se formam as mentalidades, como a escola e as mídias sociais, quanto nas mais simples conversas entre amigos, os católicos agora têm de argumentar para defenderem e justificarem temas tão díspares como a castidade, a opção pelos pobres e a existência de Deus.
Além disso, o cristianismo frequentemente tornou-se uma espécie de “bode expiatório’. A evangelização dos povos indígenas é um bom exemplo. Os europeus, na verdade, invadiram seus territórios, matando, destruindo e escravizando. Muitos se justificavam dizendo que os indígenas podiam ser mortos porque não eram batizados e, sendo assim, não eram gente, mas sim bichos. A Igreja, contudo, não aprovou esse comportamento e os jesuítas, entre outros religiosos, passaram por grandes sofrimentos defendendo os indígenas, mas suas missões são apresentadas apenas como lugares onde a cultura indígena era destruída.
Por fim, a partir da metade do século XX, foi-se tornando cada vez mais escandaloso o fato de que muitos poderosos se declaram católicos, mas têm uma conduta totalmente oposta aos mandamentos de Cristo. Exploram e corrompem, buscando seu enriquecimento sem nenhuma preocupação real com o bem comum.
Esses fatores têm levado a comunidade católica a se perguntar sobre sua identidade, como se manter fiel a ela e confrontar uma sociedade que, sob os mais diversos aspectos, parece se opor cada vez mais aos valores cristãos.
Qual é a identidade cristã?
Uma religião que, ao longo de vinte séculos, se espalhou pelo mundo inteiro, chegando aos mais diversos grupos étnicos e culturais, mantendo sempre sua unidade, tem forçosamente que apresentar múltiplas identidades. Assim, a pergunta adequada não é “qual é a identidade católica?”, mas sim “o que, na prática, unifica as múltiplas identidades católicas?” ou “o que, idealmente, deveria embasar uma justa identidade católica?”
Teoricamente, essa identidade, em seus fundamentos unificadores, está sintetizada no Credo, “sinal de identificação e de comunhão entre os crentes” (CIC, n. 188)1. Contudo, não encontramos nele referências explícitas à defesa da vida, à opção pelos pobres, à obediência ao Bispo de Roma ou mesmo às razões pelas quais um Deus bondoso permite o sofrimento de Seus filhos – grandes temas que dividem os cristãos entre si e os separam de ateus e agnósticos.
O que caracteriza a identidade católica, em suas múltiplas manifestações, não é nosso posicionamento diante de temas polêmicos, mas sim o pertencimento à Igreja Católica Apostólica Romana. Ou pela adesão a seus espaços comunitários, ou a seus ritos, e/ou à sua doutrina, todos os católicos comungam dessa convicção de que Deus se comunica com eles por esse vínculo – ainda que muitos o façam apenas por tradição. A fluidez desse pertencimento é força e fraqueza do “ser católico”. Força porque facilita a unidade entre os fiéis. Fraqueza porque inibe a militância mais aguerrida.
O desafio da identidade negativa
Nossas opções e identidades são frequentemente definidas mais pela rejeição a uma posição do que pela adesão a outra. Na política, vemos isso muitas vezes: queremos a derrota de um candidato mais do que a vitória do outro. Por isso, a manipulação político-ideológica vale-se da “construção de um inimigo” real ou imaginário, para congregar adeptos a uma causa.

Grupos opositores à abertura da mostra Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira protestam no Parque Lage, no Rio de Janeiro, Tomaz Silva / Agência Brasil
Essa “identidade negativa” é muito mais afetiva do que racional, fundamentada no escândalo diante de certos fatos, mais do que na reflexão. É uma identidade que se deixa determinar pela oposição a uma mentalidade supostamente hegemônica, na qual vários pequenos confrontos cotidianos, nem sempre associados, se somam para criar uma visão idealizada de um adversário maligno. Por exemplo, certo desdém em relação a uma família com muitos filhos ou a uma esposa que só trabalha em casa; o reconhecimento dos direitos das minorias LGBTQI+, que parece negar a moral tradicional; a corrupção política e a crise econômica… Esses e outros confrontos cotidianos, supostamente insuflados por uma mentalidade anticristã, vão formando uma ideia de inimigo externo e reforçando a convicção de uma identidade católica e de uma vida comunitária que devem proteger os cristãos e seus filhos dos perigos do mundo.
Assim, surge um identitarismo reativo em que a oposição a certas forças sociais parece falar mais alto do que a própria mensagem evangélica; em que a oposição a um inimigo (que, muitas vezes, é identificado com setores da própria Igreja) se torna mais determinante que o amor ao próximo – esse, sim, um valor que o cristianismo nunca deixou de pregar como virtude necessária a todos os seus membros.
O desafio da universalidade
A identidade católica será sempre plural, ainda que traga em si um elemento unificador. Em uma sociedade diversa e que erigiu a liberdade, identificada com uma total autonomia, como valor absoluto, o catolicismo enfrenta um problema particular: ele se vê como universal, destinado a todos, portando valores que se aplicam a todos.
Os católicos, não importa se de esquerda ou de direita, progressistas ou conservadores, acreditam que ao menos uma parte essencial de seus valores são universais e se destinam a todos. Pode ser a opção pelos pobres ou a complementariedade entre homem e mulher, mas a universalidade está presente como princípio; a missão pode ter caráter francamente proselitista ou ter se identificado mais com o trabalho social, mas deve se abrir a todos, sem exceção.
Em um Estado laico, no qual nenhuma crença deve ter prevalência sobre as demais, como conciliar esta pretensão de universalidade com o respeito pelo diferentes?
O caminho da kenosis
O primeiro desafio da explicitação político-cultural do que é o catolicismo em nossos tempos reside exatamente nessa integração entre universalismo e respeito ao outro. Um desvio, mesmo bem-intencionado, poderá levar a um relativismo desnorteado ou a um sectarismo prepotente. Talvez a resposta mais exigente e desafiadora a esse desafio, para surpresa de muitos, esteja com Joseph Ratzinger (1998), ao propor a humildade da kenosis, o esvaziamento de si perpetrado por Cristo em seu sacrifício na cruz: “A kenosis de Deus é o lugar em que as religiões podem entrar em contato sem reivindicações arrogantes de dominação […] A pobreza é verdadeiramente a forma divina pela qual a verdade aparece: na sua pobreza, pode exigir obediência sem alienação”2.
Desde os primeiros tempos, os cristãos reconheceram-se nessa identificação com o Cristo que, com uma firmeza humilde, se entrega ao mundo. Nas palavras do autor da Carta a Diogneto: “A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam […] Tal é o posto que Deus lhes determinou, e não lhes é lícito dele desertar”3.
O encontro místico com Cristo
Essa posição permite que o cristão se coloque de modo adequado numa sociedade plural, sem cair nem na subserviência, nem na prepotência. Mas ainda não responde à pergunta sobre a identidade católica. O teólogo Karl Rahner (1904-1984), em um trecho famosíssimo, escreveu:
“o cristão devoto do futuro ou será um ‘místico’ – alguém que ‘vivenciou algo’ – ou não será absolutamente nada”4. Mas, o que seria
esse misticismo?
O papa Francisco (1936-), fazendo ecoar uma afirmação clássica do papa Bento XVI (1927-2022) no início da Encíclica Deus Caritas est: sobre o amor cristão5, escreveu em uma carta: “A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus: um encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à minha existência; mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela comunidade de fé em que vivi […] Sem a Igreja – creia-me! –, eu não teria podido encontrar Jesus, embora ciente de que este dom imenso da fé está guardado em frágeis vasos de barro que é a nossa humanidade”6.
O misticismo católico não se caracteriza por feitos sobrenaturais – eles existem, são atestados como milagres, mas não são constitutivos da experiência cotidiana do fiel. Sua característica fundamental é o encontro e a companhia de Cristo, uma presença pessoal, que, apesar de sua inevitável transcendência, adquire feições similares às de todo amor humano.
A identidade é descoberta na missão
Uma identidade desenvolve-se na relação com as demais. Um grupo de cristãos enclausurados em si mesmos, por mais devotos e místicos que sejam, não terão uma visão adequada do que significa seguir a Jesus. Ao propor, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium: sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual7, uma “transformação missionária”, uma “Igreja em saída”, o papa Francisco apresenta aos fiéis um exercício prático para a descoberta da própria identidade. Ao encontrar aquele que sofre dores materiais e/ou existenciais, aquele que se consome em uma busca ansiosa, ou aquele que se compromete e se engaja em uma luta social pelo bem do outro, o cristão que fez o próprio encontro com Cristo vai entendendo qual é sua identidade, a especificidade de sua vocação no mundo – que não coincide com uma defesa renhida das próprias ideias e prerrogativas, mas na entrega de si ao mundo.
O cristão descobre-se a si mesmo no amor ao próximo. Qual é a identidade católica em um mundo plural? Não há uma justa resposta pronta a essa pergunta. Cada cristão irá descobrindo sua resposta a partir da própria experiência, vivida em comunhão com a Igreja. E a própria Igreja a descobrirá em um processo coletivo, no qual é chamada a se “converter àquilo que realmente é”.
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