A primeira missão da Igreja é evangelizar. Sua última meta é evangelizar. Sua única tarefa primordial é evangelizar. Dizer e viver a Palavra de Deus que nos alimenta e impulsiona no mundo. Eis o coração da mensagem cristã. O papa Bento XVI (1927-2022) assim descreveu: “É a própria Palavra que nos impele para os irmãos: é a Palavra que ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores. Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova”.1 Por sua vez, padre José Comblin (1923-2011) assim definiu o Verbo: “Evangelizar consta assim de três graus: evangelizar é anunciar os evangelhos; os evangelhos anunciam Jesus Cristo; Jesus Cristo anuncia o advento do Reino do Pai, que é vida e liberdade dos homens”.2
Em 1975, São Paulo VI (1897–1978) publicou a mais bela carta do século XX, intitulada Evangelii Nuntiandi, na qual disse que o próprio Jesus é o Evangelho de Deus, o primeiro e o maior dos evangelizadores. Escreveu: “Como evangelizador, Cristo anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo o mais passa a ser ‘o resto’, que é ‘dado por acréscimo’. […] Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma […]” (EN, n. 8.15).3
Evangelizar não é ato isolado, mas profundamente eclesial e sempre missionário. Também é o verbo que torna vivo a boa notícia de Jesus. Seu modo de falar existia na tradição rabínica dos judeus, mas ganhou força vulcânica em Sua pregação. Jesus proclama, em alto e bom som, a Seu povo semita no século primeiro da Era Cristã esta mensagem antiga e sempre nova: os marginalizados foram eleitos por Deus para realizar um plano na história humana e concretizar o Reinado de Deus. O livro do Talmude assim escreve: “Deus toma sempre o lado do perseguido”.4 Jesus exulta sob a ação do Espírito Santo: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos. Sim, Pai, foi assim que tu dispuseste em tua benevolência” (Lc 10,21). Qual seria a razão profunda de tal epifania em Jesus? Certamente a experiência do Espírito de Deus, que sabe que “os pobres estão propensos a receber com fé o anúncio do advento de Deus, e a reconhecê-lo apesar das aparências humildes”.5
Uma das mais lindas novidades da fé cristã é colocar pessoas das classes médias em contanto com os proscritos. Estar ao lado dos excluídos, social, sexual ou economicamente, fez das comunidades cristãs um oásis marcante de humanidade e fraternidade ativa. Seguidor de Jesus não foge do mundo nem vive separado. Ele pede conversão pessoal e da sociedade, não uma fuga para o deserto. Evangelizar é unir fé profunda em Deus, partilha de bens, oração e ação. É importante recordar que “o movimento de Jesus tinha um caráter rural pré-moderno, se assim se pode dizer. Já no contexto da Palestina, o movimento não era bem aceito nas cidades modernas da Galileia, nem, sobretudo, na Judeia e na cidade-santuário Jerusalém. O próprio sermão da montanha foi proclamado numa colina perto de Cafarnaum e não na praça da cidade ou no mercado ou na rua (Mt 5,1)”.6
(Lc 10,21)
Pouco tempo depois, Paulo, em sua pregação e modo de evangelizar, converteu o modelo rural do Reino de Deus de Jesus e seus amigos da Galileia para um modelo urbano e mundial em seus horizontes. Entretanto, será preciso resgatar a memória dos membros fundadores das Igrejas por toda a Ásia, além dos apóstolos e bispos das Igrejas. Recordemos “Lídia, Epafrodito, Tito, Cloé e outros, e do projeto escatológico e contestatário que fundaram. O cristianismo leva em suas raízes uma visão desde os pobres, desde os excluídos, desde a base popular das sociedades galilaica, helenística e romana. É importante que leiamos de novo a história das origens. A história da Acaia, e especialmente da Macedônia, ocupa um lugar fundamental”.7 Jesus ensina-nos que não podemos entender Deus sem projeto, Não há como saber do divino sem ver que Jesus revela Deus. Deus é do jeito de Jesus. Estar do lado do oprimido, do imigrante, do refugiado, dos subalternos é essencial no Evangelho.
Cada povo foi guardando as memórias de Jesus, de Seu movimento e de Suas ações de profunda transformação humana a seu modo. Surgiu um “cristianismo palestino”, com rosto e perfil da Igreja de Betânia. Apareceu um “cristianismo paulino” nas cidades da Grécia, da Itália e da Ásia Menor. Um “cristianismo joanino” que adentrou na Ásia Menor, na Capadócia e na Armênia. E, no decorrer de séculos, perseguições, modos culturais e formas litúrgicas diversas, vemos emergir e ganhar corpo histórico uma miríade de rostos de Cristo: sírio, copta, macedônico, armênio, saxão, germânico, russo, bizantino, espanhol, português, irlandês, africano, e enfim, latino-americano. O cristianismo fez-se plural e pluralista. Temos um rosto de Cristo no lenço de Verônica, outro no Mandylion de Edessa, outro no Santo Sudário. Nos séculos V a XV, foram construídos Cristos cósmicos na arte bizantina, chamados de Pantocratór. Depois, entre os séculos V e XII, o Ocidente apresentou imagens fortes do Cristo do Juízo Final. A terceira grande imagem é o Cristo da Luz, ou os belos Cristos das catedrais góticas. Uma quarta imagem é o Cristo Renascentista. Enfim, uma quinta imagem artístico-cultural é o Cristo da Emoção dos séculos XVII e XVIII. O imaginário cristão e os seguidores de Jesus em todas as épocas produziram e projetaram rostos de seu Mestre. Assim escreve o eminente estudioso gaúcho Armindo Trevisan (1933-): “O rosto de Cristo será sempre o da Fé, ou seja, um rosto não só modelado por preocupações físicas ou artísticas, mas inspirado pelo desejo sincero de vislumbrá-lo, já neste mundo, com os traços que terá na Vida Eterna. Mesmo quando identificado com o rosto do mais humilde e infeliz ser humano, será sempre um rosto onde é possível descobrir-se um lampejo de sua Ressurreição”.8
A questão principal é esta: como manter e cultivar a originalidade do Evangelho de Jesus, celebrar Sua Páscoa e não submeter a boa notícia aos enquadramentos ideológicos do dinheiro, do poder e da idolatria? Como seguir Jesus sem desviar a rota que proclame o Reinado de Deus entre nós na história?

Cristo Pantocrator, igreja Hagia Sophia (Istambul)
Em primeiro lugar, é importante verificar se rosto de Cristo que a Igreja “mostra” por sua vida, comunidades, instituições, mensagem e testemunhos é de fato a boa notícia do Reinado de Deus. Se a catequese, a pregação, as ações sociais e a liturgia são espelhos nítidos do rosto de Cristo. Ao falar de Jesus, precisamos ver e crer no Deus de Jesus. Ao ver o Deus de Jesus, é preciso sentir Sua presença viva na vida, na Eucaristia, na Palavra e no corpo dos pobres. Quem vê Jesus já participa da eternidade de Deus. Para Jesus, Deus é soberano, e nenhuma religião, nem sequer a cristã, pode manipular e querer restringir Seu amor sem fronteiras. Celebrar Jesus vivo é viver o que Jesus professou. Professar Jesus é saber-se criatura amada pelo Criador.
Sentir-se simples como Ele, para dizer Sua Palavra simples aos simples. O bispo mártir salvadorenho assim proclamava em suas homílias na capital salvadorenha antes de ser assassinado: “Não me tomem a mal, tampouco tomem como exclusivo de minha homilia este momento histórico da semana. Para mim o principal de minhas ‘pobres homilias’ é a doutrina que lhes quero ofertar. Por exemplo, hoje, o principal é que Jesus Cristo é a Epifania, a manifestação do amor de Deus aos homens. Isto é o que me interessa que levemos hoje. Mas, para viver isto na realidade concreta, não podemos esquecer o que está acontecendo entre nós, dentro da Igreja e fora da Igreja (homilia de sete de janeiro de 1979)”.9
Em segundo lugar, assumir um modelo dialógico de evangelização. Sempre precisamos voltar ao referencial dos Evangelhos e do livro dos Atos dos Apóstolos. Isso é o que chamamos volta às origens e às comunidades apostólicas, tendo como exemplo Pedro, Paulo, João e, sobretudo, o discipulado itinerante das mulheres da Galileia. Aqui bebemos a água pura da Tradição, sem ser tradicionalista ou integrista. Temos o coração aquecido e aberto para aprender novos modos de pregar e viver a fé no século XXI. E, ao reler as páginas dos Evangelhos canônicos, vamos descobrir que, “para o Evangelho de João, Maria é a primeira a ter feito esse caminho de fé, a primeira a ter compreendido que acreditar em Jesus depois da ressurreição implica não conservar a memória de um morto, por mais ilustre e venerado com amor e dedicação, mas reconhece-lo vivo. Por isso se torna o protótipo da fé discipular. Não apenas isso, porém. Maria de Magdala é também aquela que é enviada pelo Senhor ressuscitado para criar na comunidade discipular as condições para a recepção do Espírito”.10
É possível conhecer a definição de evangelização transcrita na Carta a Diogneto, do século II da Era Cristã. Esse conteúdo nos apresenta quem são os cristãos: “Em cada gesto cotidiano que os outros fazem dão um toque diferente. Moram na terra, com espírito peregrino. Toda terra estranha não lhe é estranha. Está em casa, em qualquer parte do mundo. Mas, por sua vez, toda pátria lhe é estranha, superando nacionalismos doentios”.11
Notas
1 BENTO XVI, Papa. Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini: sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2010. p. 174. (Coleção Voz do Papa).
2 COMBLIN, José. Evangelizar. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 7.
3 PAULO VI, Papa. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi: sobre a evangelização no mundo contemporâneo. Roma, 8 dez. 1975. Disponível em: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi.html. Acesso em: fev. 2023.
4 HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 92.
5 COMBLIN, José. A fé no Evangelho. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 14. (Coleção Meditações Evangélicas).
6 HOORNAERT, Eduardo. O movimento de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 91. (Coleção Uma História do Cristianismo na Perspectiva do Pobre).
7 PIXLEY, Jorge. Os primeiros seguidores de Jesus na Macedônia e Acaia. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana (Ribla), Petrópolis, n. 29, p. 60-84, 1998.
8 TREVISAN, Armindo. O rosto de Cristo: a formação do imaginário e da Arte Cristã. Porto Alegre: AGE, 2003. p. 21.
9 VV.AA. La voz de los sin voz: la palabra viva de monseñor Oscar Arnulfo Romero. San Salvador: UCA EDITORES, 1980. p. 305.
10 PERRONI, Marinella. As mulheres da Galileia: presenças femininas na primeira comunidade cristã, São Paulo: Loyola, 2017. p. 33.
11 LIBÂNIO, João Batista. Olhando o futuro: prospectivas teológicas e pastorais do cristianismo na América Latina. São Paulo: Loyola, 2003. p. 155.
Muito bom, parabéns pelo artigo!