São Francisco de Assis (1182-1226) estava quase completamente cego quando compôs o “Cântico das Criaturas”, ou “Cântico do Irmão Sol”. Com um olhar de fé, pleno de gratidão, o Poverello contemplava as maravilhas da criação, vislumbrando nelas, a presença do Criador que lhes dá um significado.
Todas as criaturas, espelhos da perfeição divina, são irmãos e irmãs nossos, porque são obras e dom do mesmo Autor. Aquele que criou os seres humanos criou também o mundo que nos envolve.
Quem não conhece o “Cântico das Criaturas”, ou “Cântico do Irmão Sol”1, de São Francisco? Éloi Leclerc (1921–2016), frade franciscano, gostava de designá-lo de “Cântico das Fontes”. Todos concordam em louvar a inspiração poética desse texto, ressaltando que se trata da primeira obra literária da língua italiana. Não basta constatar nele apenas uma faceta artística do Poverello, como se costuma fazer, isto é, amigo das flores, das avezinhas e até de um lobo furioso. É importante ir além do lirismo sentimental. Também não se deve esquecer de que morte é chamada de “irmã”.
Sim, o Cântico é a profissão de fé de São Francisco. Exprime sua concepção do mundo: sua maneira de se situar no universo, de ver as coisas, os acontecimentos, as pessoas. No fim de sua existência, ele confiou a seus discípulos sua arte de viver, a sabedoria que pacientemente elaborou, o fruto da experiência lentamente adquirida. Nessas poucas linhas, um santo revela o que pensa do mundo e da vida.
O fato de ele ter se exprimido em um vernáculo na mensagem em que condensou sua experiência pode ser significativo. O idioma dos documentos oficiais era o latim. Porém, São Francisco optou por uma língua falada cotidianamente. Com o uso do vernáculo, o povo simples e inculto poderia se associar às vozes dos frades que o cantavam por determinação do Poverello, como uma forma de pregação. Sua sabedoria não era reservada aos iniciados, nem aos cenáculos fechados às pessoas comuns. Era, por essência, universal: uma visão da vida oferecida a todos.
De fato, São Francisco oferece-nos, em seu Cântico, uma ampla visão do mundo: situa o ser humano no centro de um desígnio de amor que o envolve de todas as formas, sem nunca mudar de direção
Merece atenção o fato de que o Santo de Assis tenha escolhido a poesia para se exprimir. Tal como um filósofo existencialista que adota o gênero literário do romance para descrever um mundo sem essências, para ele, a realidade era de ordem artística, da ordem da Graça no pleno sentido dessa palavra. O poeta é aquele que se encanta com as coisas, é sensível a sua graça, e sua existência é considerada como uma felicidade. É também aquele que descobre nelas o dom gratuito, uma graça, fruto de um amor. Seu mundo é, essencialmente, o mundo da graça. É precisamente esse universo que São Francisco nos quer revelar.
O Cântico compreendia, a princípio, apenas as seis primeiras estrofes. As que se referiam aos “que perdoam” e “à morte” foram depois acrescentadas em circunstâncias particulares. Na primeira versão, o conteúdo é um louvor a Deus a propósito das diferentes criaturas do mundo material: o sol, a lua, as estrelas, o vento, a água, o fogo, a terra com suas flores e seus frutos…
São Francisco percebeu que essas criaturas são belas e úteis. Elas nos são concedidas por Deus para nosso bem. Foi Deus que as criou, e sua beleza nos fala d’Ele: “O sol… é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, é sinal. No céu as formastes [as estrelas] claras, preciosas e belas”. Deus criou-as para nós. Por meio delas, o Pai ocupa-se de nós. “Por ele nos alumias”; “Dás sustento”. Assim, aos olhos de quem tem fé, as criaturas revelam seus segredos: vêm do Pai para nos ajudar: são “fraternais”.
Quando nos fala do “irmão sol”, da “irmã água”, do “irmão fogo”, São Francisco não utiliza apenas linguagem figurada, mas confia-nos, em uma palavra, o segredo da existência dessas criaturas. Elas são criadas pelo Altíssimo, acompanham e sustentam nossa vida. No Cântico, tudo é beleza.
O mundo é fraternal. Quem faz essa descoberta possui uma atitude otimista, construtiva, de acolhimento e de simpatia. São Francisco não ignorava que o pecado veio perturbar a ordem fundamental. Ao compor o Cântico, ele percebia que o mundo ofendia o Criador. Permaneceu, no entanto, aquela fé de que o mundo vem do Pai. O Universo não é armadilha, nem cilada, nem ameaça. A atitude primordial do cristão não é a recusa, o medo, a fuga.
Para os filhos de Deus, o mundo é fraternal. Soa tão bem a nossos ouvidos esta exigência de nossos tempos: cuidar do criado. E, por ser constituído de irmãos e de irmãs, o mundo é também filial. Em sua totalidade, torna-se fruto do amor do Pai por Seus filhos. Essa certeza de um amor que nos circunda e nos cumula gratuitamente, a partir de todas as realidades da existência, é a fonte de uma alegria perene e de uma confiança indefectível.
De fato, São Francisco oferece-nos, em seu Cântico, uma ampla visão do mundo: situa o ser humano no centro de um desígnio de amor que o envolve de todas as formas, sem nunca mudar de direção. A partir das circunstâncias da vida, o Poverello propõe a todos uma atitude constante, em um sopro que tudo arrebata: “Louvado sejas, meu Senhor”. Aos “perseguidos” pelo amor de Deus, ele indica como fator essencial o louvor. A condição humana consiste em louvar a Deus2.
Notas
1 Cf. FASSINI, Dorvalino Francisco (coord.). Fontes Franciscanas. 2. ed. Santo André: Editora O Mensageiro de Santo Antônio, 2020. p. 120-121.
2 Cf. MOTTE, Ignace-Etienne; HEGO, Gérard. A Páscoa de São Francisco. Álavo: Ediciones Franciscanas Arantzazu, 1972. p. 109-125.
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