Uma reflexão sobre os caminhos da obra de Deus no mundo
Em nossa sociedade da informação, na qual todos parecem estar sendo informados (ou desinformados) sobre tudo, somos bombardeados por notícias escandalosas de pessoas que deveriam estar servindo a Deus, mas fazem atos ignominiosos. Jesus diz, no Evangelho segundo São Mateus, “se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria que lhe pendurasse ao pescoço uma grande pedra de moinho, e que fosse afogado na profundeza do mar” (Mt 18,6); mas nem por isso esses escândalos deixam de acontecer e de nos afetar negativamente. Abatem a moral e afastam a muitos do cristianismo.
Vivemos um tempo no qual a arte mostra uma beleza duvidosa, que mais retrata a dor e a revolta humanas que o esplendor da Verdade, em que falsos mestres proclamam a raiva e exploram o ressentimento, em que tudo se torna mercadoria a ser consumida indistintamente. As ideologias, de direita ou de esquerda, progressistas ou conservadoras, contaminam de forma evidente os discursos e parecem relativizar qualquer referência a uma verdade maior. Trata-se, sem dúvida, de um tempo perigoso para falarmos de coisas boas, vindas de pessoas más – além de que temos de estar prontos para reconhecer que coisas más podem vir de pessoas boas…
Evidentemente, não é o caso de defender atos maus, mas suscitam em nós perguntas que devem ser respondidas: os maus podem servir a Deus? Uma obra bela e boa pode surgir de um coração mau? Para entender essa questão, podemos analisar dois casos, ainda que sem citar nomes, pois o que interessa não é atacar ou defender pessoas. O julgamento, particularmente aquele que resulta em condenação, deveria sempre ser um ato doloroso para nós, um gesto a ser realizado apenas quando absolutamente necessário. Aqui, o que nos interessa é entender a ação de Deus no mundo e como devemos responder-Lhe, e não condenar a esse ou aquele.
A beleza da arte e a maldade do ser humano
Recentemente, muitas comunidades católicas foram abaladas com a notícia de que um dos mais importantes artistas sacros europeus da atualidade está sendo condenado por abusos contra mulheres. Infelizmente, notícias como essa se tornaram comuns nesses tempos de #Me Too (e temos de dar graças a Deus por isso, pois antigamente era pior, quando essas coisas aconteciam e ficavam impunes). O cinema e a televisão estão repletos de casos semelhantes. Mas não deixa de ser chocante, para os católicos, que um artista que embelezou tantos espaços sagrados tenha incorrido nesses mesmos erros…
Muitos artistas têm suas vidas marcadas pelos vícios, pela violência doméstica e até por assassinatos. Nem por isso seus trabalhos deixam de ser belos, comovendo-nos e até nos aproximando de Deus.
Está em curso um debate sobre a necessidade de retirar suas obras dos espaços sagrados, até como gesto simbólico de expiação pelos pecados cometidos. Trata-se de uma opção controversa. De um lado, as obras não têm nada a ver com os erros do autor; não é que ele teve de pecar para poder fazê-las. De outro, tanto as vítimas quanto a sociedade precisam de sinais claros de que a impunidade não triunfou nesses casos de abuso. As futuras gerações precisam saber que aqueles gestos não podem ser aceitos. O próprio perdão não pode ser adequadamente aplicado nos lugares em que reina a impunidade.
Há muitos exemplos, algumas vezes até tétricos, de obras de arte criadas por pessoas que poderíamos julgar como más. “Na Itália, por trinta anos, sob os Bórgia, tiveram guerra, terror, homicídio e sangue, e produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça, tiveram amor fraterno, quinhentos anos de democracia e paz, e o que produziram…? O relógio cuco”. A frase, do ator, escritor, diretor e produtor norte-americano Orson Welles (1915-1985), consta de O Terceiro Homem (The Third Man), filme de 1949 inspirado no romance homônimo do escritor britânico Graham Greene (1904-1991). Ainda que exagerada e até injusta, ela reflete uma constatação que podemos fazer ao longo dos tempos. Frequentemente, grandes obras surgem das pessoas moralmente menos indicadas.
Muitos artistas têm suas vidas marcadas pelos vícios, pela violência doméstica e até por assassinatos. Nem por isso seus trabalhos deixam de ser belos, comovendo-nos e até nos aproximando de Deus. Às vezes, chegamos a ter a impressão de que o aguilhão do mal espicaça a alma, levando-a a compreender ainda mais o resplendor do bem. Isso não os absolve das maldades praticadas – nem deveria ser um estímulo para que outros façam males iguais.
Deus faz nascer o sol sobre bons e maus, chover sobre justos e injustos (cf. Mt 5,45b). Também concede o talento e a genialidade tanto para uns quanto para outros – e permite que todos criem obras para louvá-Lo. Com isso, não está legitimando o mal, mas nos ensina a não termos um olhar arrogante para com os demais, a compreender que o Senhor olha com ternura a todos nós. É um convite para nos fascinarmos ainda mais com a beleza e a grandeza de Seu amor, que transcende nossas medidas.
E o caso do “falso” pregador?
Outra situação, igualmente escandalosa para nós, é representada por aqueles pregadores e influenciadores que, em nome de Deus, proclamam as maiores barbaridades e/ou enganam o povo, enriquecendo-se com isso. Muitas vezes, constatamos, indignados, que sua pregação é má, não no sentido de proporem gestos maus, mas no sentido de quererem instrumentalizar a fé e o espírito religioso dos fiéis em proveito próprio… E temos ainda aqueles que estão envolvidos em escândalos sexuais e acusações de pedofilia. Como o Senhor pode permitir que pessoas assim anunciem Seu nome?
Muitas vezes, constatamos, indignados, que sua pregação é má, não no sentido de proporem gestos maus, mas no sentido de quererem instrumentalizar a fé e o espírito religioso dos fiéis em proveito próprio…
Novamente, sem querer desconsiderar o mal ali onde ele está efetivamente presente, temos de considerar que aquilo que vale não é a intenção de quem fala, mas a fé de quem ouve. Quantos não encontraram a fé por meio da pregação e dos discursos de pessoas nem um pouco confiáveis! Quando encontramos casos assim, costumamos nos enraivecer pela falsidade do pregador, mas talvez devêssemos mais nos envergonhar por Deus ter precisado recorrer a ele, por não ter encontrado entre os bons alguém capaz de chegar ao coração de nossos irmãos…
Isso não deixa de representar, para nós, uma responsabilidade a mais. Pouco vale condenar os erros dos outros se não apresentamos um caminho melhor. Quando maus pregadores ajudam as pessoas a se aproximarem de Deus, aspectos importantes do cristianismo acabam sendo esquecidos. Aliás, toda pregação é parcial, pois somos seres humanos limitados, incapazes de comunicar toda a grandeza de Deus – mas, quanto pior é o pregador, mais desvirtuada será a mensagem cristã. Daí nossa responsabilidade de ajudarmo-nos mutuamente, para que o seguimento a Cristo seja cada vez mais integral e fiel a Seus ensinamentos.
Um tempo de juízos difíceis
Como discernir a quem seguir e o que admirar, a quem evitar e o que renegar? Em primeiro lugar, precisamos ter em mente que a Verdade, o Bem e a Beleza (com maiúsculas no início, isto é, que vêm de Deus) sempre apontam para o amor, a misericórdia e a solidariedade. O que nos leva à raiva, à violência e à divisão não vêm de Deus. Mesmo que tenhamos de condenar os erros, essa condenação – quando iluminada por Deus – é repleta de tristeza e de esperança pela realização do bem. Em segundo lugar, quem é verdadeiro aponta para Deus e Seu amor, para o desejo de bem dos irmãos, enquanto o falso aponta para os ídolos do mundo ou até para nós mesmos. Gurus que geram um seguimento irrefletido, artistas que apontam para si mesmos ou para uma visão narcisista do mundo, não são sinais de Deus – mesmo quando falam e se valem das coisas de Deus.
A oração sincera e o seguimento humilde à Igreja universal (não a esse ou àquele profeta de plantão) sempre nos auxiliam nesses terrenos movediços. Poderemos errar muitas vezes, mas – no final – a bondade e o amor d’Ele nos guiarão pelo rumo certo.
Saber que Deus pode, segundo o ditado popular, “escrever certo por linhas tortas” é uma sabedoria que deveria nos levar a uma justa e humilde relativização de nossos julgamentos morais. Existe um relativismo que devemos condenar (por exemplo, aquele que relativiza a dignidade da pessoa humana, instrumentalizando-a em função de interesses particulares) e uma relativização que devemos adotar (aquela que reconhece nossos limites humanos e se abre para o dom de Deus).
Sim, Deus realmente pode se valer até dos maus para fazer o bem – e rezemos para que nós mesmos não nos tornemos maus sem nos darmos conta! A oração sincera e o seguimento humilde à Igreja universal (não a esse ou àquele profeta de plantão) sempre nos auxiliam nesses terrenos movediços. Poderemos errar muitas vezes, mas – no final – a bondade e o amor d’Ele nos guiarão pelo rumo certo.
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