Publicado na edição de Maio/2015
Com a mensagem para o 49o Dia Mundial das Comunicações Sociais, celebrado no dia 17 de maio, o papa Francisco (1936-) relê a comunicação contemporânea a partir da família, “primeiro lugar onde aprendemos a comunicar” e em que começamos a construir os nossos contatos com o mundo. “Somos comunicação”. Mais do que um fazer, do que um ter, do que um poder, comunicar é “ser”: nascemos em comunicação, crescemos porque nos comunicamos, comunicamo-nos para viver. É uma dimensão existencial, vital ao próprio ser humano em relação.
Se, em 2014, o papa destacava a proximidade como o poder da comunicação, na mensagem deste ano, intitulada “Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor”1, ele ressalta o processo de “descoberta e construção” dessa proximidade, a partir do relato evangélico da visita de Maria a Isabel (cf. Lc 1,39-56). O encontro dessas duas primas grávidas e de seus bebês, segundo o pontífice, apresenta a família como um “momento original” do processo comunicativo.
Assim, o papa Francisco faz um gesto copernicano do ponto de vista dos estudos de comunicação. Ele tira do centro do processo comunicacional os “meios”, entendidos – muitas vezes também no pensamento eclesial – meramente como as tecnologias, a “grande mídia”, as indústrias culturais. Em seu lugar, coloca os “corpos” que se tocam, que exultam pelo encontro, entendendo a comunicação como “um diálogo que se entrelaça com a linguagem do corpo”.
Ao sugerir a família como foco de reflexão sobre a comunicação, partindo da alegria do bebê no ventre de Isabel ao se encontrar com Maria grávida de Jesus, o pontífice radicaliza, vai às raízes do processo comunicativo, a seu núcleo original, e dá um salto “dos meios aos corpos”: ao vínculo, ao contato, ao toque, à “cola” das relações humanas e sociais. A comunicação, diz o papa, possui um “início vivo”, que é o “encontro interpessoal”. “Exultar pela alegria do encontro é o arquétipo e o símbolo de qualquer outra comunicação”. Dessa relação entre corpos, nasce um encontro alegre e exultante, uma comunicação encarnada, que brota de uma experiência e de uma vivência profundas do que há de mais central no cristianismo: a encarnação de Deus, o “Verbo que se faz carne”, que se faz “corpo”.
Refletindo sobre o movimento de alegria do menino na barriga de Isabel ao ouvir a saudação de Maria, o papa Francisco indica que a “primeira ‘escola’ de comunicação” é o próprio ventre materno. Nele, a relação com a mãe é a primeira experiência comunicativa do bebê. O método pedagógico dessa escola familiar é, justamente, a “escuta e o contato corporal”.
O papa Francisco não entende a comunicação como uma técnica fria, puramente informacional. Comunicar, segundo ele, não é uma mera ação de “produzir e consumir informação”. Também não é uma habilidade que possa ser aprendida autonomamente, nem um “dom de nascença”, reservado aos escolhidos. Se assim fosse, isso acabaria privilegiando alguns e excluindo outros: os que teriam o dom não precisariam fazer mais nada, e os que não o teriam nada poderiam fazer.
Entretanto, ninguém nasce comunicador. Comunicação é algo que vem das entranhas, do calor materno e humano. É uma arte de vida que se aprende na relação. Para comunicar, é necessário um caminho pedagógico, um “ambiente de aprendizagem”, que começa na família. Não por acaso, o verbo “aprender” é quase um refrão de toda a mensagem do papa Francisco. Mas aprender o quê? O significado de “comunicar no amor recebido e dado”. É assim também nos nossos lares?
Ao sermos inseridos em uma família, nosso leque de relações se amplia em “gênero e geração”, escreve o pontífice. Passamos a habitar um “ambiente de vida mais rico”, “um ventre feito de pessoas diferentes, em relação”, um “espaço onde se aprende a conviver na diferença”, diante dos “limites próprios e alheios”. Nesse “ambiente de relação” que é a família, damo-nos conta de que só vivemos e sobrevivemos se estivermos ligados, vinculados, conectados a outros. Compreendemos que “nossas vidas estão entrelaçadas numa ‘trama’ unitária, que as vozes são múltiplas e cada uma é insubstituível”. Unidade na multiplicidade: mãe, pai, esposa, esposo, filha, filho, irmã, irmão… Papéis e funções múltiplos que não escolhemos, mas que constroem relações insubstituíveis. Cada família é única.
Para favorecer essa convivência, o papa Francisco apresenta três “dinâmicas de comunicação”. A primeira delas é a “oração”, “forma fundamental de comunicação”. Cada família – mas também cada comunicador – deve pôr em prática a “dimensão religiosa da comunicação”, que, segundo ele, “é toda impregnada de amor, o amor de Deus que se dá a nós e que nós oferecemos aos outros”. Outra dinâmica é o “perdão”, que nos ajuda a reatar o vínculo rompido e que, em família, é pedagogia concreta para ensinar os filhos a serem “construtores de diálogo e reconciliação na sociedade”. Por fim, a dinâmica da “bênção”, que “quebra a espiral do mal”, do ódio, da violência, da fofoca, da discórdia, do preconceito, do ressentimento. ‘Bem-dizer’ em vez de ‘maldizer’: esse é o método em família para “educar os filhos à fraternidade”, ensina o pontífice.
A família não se encerra – e não pode se encerrar – em si mesma. A partir do núcleo familiar, somos inseridos na grande família humana. O papa Francisco deseja para mundo de hoje uma Igreja “em saída”, que “sai da própria comodidade e tem a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” (EG n. 20). Sendo “Igreja doméstica”, como definiu o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), e pequena Igreja (ecclēsiola), a família também deve ser “em saída”. E o relato evangélico escolhido pelo pontífice para esta mensagem – a visita de Maria a Isabel –ajuda-nos a refletir sobre essa saída missionária em família.
“Visitar – afirma o papa – supõe abrir as portas, não encerrar-se no próprio apartamento; sair, ir ao encontro do outro. A própria família é viva se respira, abrindo-se para além de si mesma”. Atento à realidade contemporânea, o pontífice convida a família a ser um “ambiente em relação, aberto”. Em sua comunicação com o ambiente social mais amplo (que “supõe abrir as portas”), a família pode encontrar um equilíbrio vital (um “respiro”) entre a sua conservação e a sua atualização diante dos sinais dos tempos. Dessa forma, Igreja e família “em saída” encarnam as mesmas iniciativas: “acompanhar, festejar, frutificar”, verbos citados pelo papa na Evangelii Gaudium (EG n. 24), que também repete nesta mensagem.
Nesse sentido, além de escola e de trama de relações, a família também é um “‘sujeito’ que comunica, uma ‘comunidade comunicadora’”, afirma o papa. Contudo, no âmbito eclesial, muitas vezes, a família é vista apenas como um “objeto” da evangelização, que deve ser guiado pelo episcopado e pelo clero. Especialmente no Brasil, entretanto, inúmeras comunidades eclesiais sobrevivem ao longo dos anos sem uma presença clerical ou religiosa consagrada. Na base, são as famílias o principal sujeito dessa evangelização local. A presença cristã nas estradas da história tem sua força dinâmica graças aos milhares de casais e de famílias que impulsionam a Igreja a ser realmente uma “família de famílias”, como define o papa Francisco na mensagem. Por isso, “a comunicação que emerge das comunidades em que as leigas e os leigos são os protagonistas necessita ganhar reconhecimento por parte dos pastores”, afirma o Diretório de Comunicação da Igreja no Brasil (DCIB n. 9). Porque no “ecossistema comunicativo” das comunidades eclesiais, “a criança, o jovem, a mulher, o pai, a mãe, todos são agentes da comunicação” (DCIB n. 131). E o que eu, minha família, nossas relações familiares estamos comunicando ao mundo de hoje?
No âmbito social, falar em família implica inúmeros clichês e estereótipos, que encerram esse conceito nos padrões éticos e estéticos dos comerciais de margarina. Mas o papa Francisco nos desafia a imaginar outras famílias possíveis. Seu texto nasce de um contexto: a “profunda reflexão eclesial” e o “processo sinodal” que a Igreja está vivendo, como ele mesmo diz. Por isso, a mensagem também é um indicador da imagem de família cristã que o pontífice deseja ver encarnada no século XXI.
Moisés Sbardelotto
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