“É isso que eu quero, é isso que eu procuro”

maio 29, 2023Assinante, Encontro com a Espiritualidade Franciscana, Junho 2023, Revistas0 Comentários

Quando o desejo do ser humano se abre ao desejo de Deus (Parte 1)

“É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer com todas as fibras do meu coração”. Essa é uma das frases mais impactantes, decisivas e marcantes da parte de São Francisco de Assis (1182-1226) e que nos foram transmitidas por seu biógrafo Tomás de Celano (1200-1265). Quando ouviu a leitura do Evangelho da missão na capela de Nossa Senhora dos Anjos, o Poverello começou a conhecer seu caminho; então exultou, dizendo: “É isso que quero, que busco de todo o coração”.
São Francico e Jesus Cristo crucificado, autor desconhecido

São Francico e Jesus Cristo crucificado, autor desconhecido

Segue o texto de Tomás de Celano: “Leu-se, certo dia, naquela Igreja, a passagem do Evangelho que conta como o Senhor enviou seus discípulos a pregar. O Santo de Deus estava presente e escutava atentamente todas as palavras. Depois da missa, pediu encarecidamente ao sacerdote
que lhe explicasse o Evangelho. Ele repassou tudo ordenadamente, e Francisco, ouvindo que os discípulos não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa ou sacola, nem pão, nem bastão pelo caminho, nem calçado ou duas túnicas, entusiasmou-se imediatamente no espírito de Deus. ‘É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer com todas as fibras do coração’” (1Celano 22).

Todos os franciscanos, os amigos de São Francisco, sempre tiveram em alta conta essa passagem, incontáveis vezes repetida em artigos, livros, retiros e biografias do santo. Eles a conhecem quase de cor. Trata-se de um texto provocante e provocador em todos os tempos.
“É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer com todas as fibras de meu coração”. São Francisco ouviu o Evangelho durante uma missa e aquelas palavras tocaram-lhe o coração. Até então, ele jamais tinha sentido essa conivência profunda entre seus mais caros desejos e o Evangelho. Subitamente, o Evangelho penetrou em todo o seu ser. É como uma iluminação. “É isso que eu quero, é isso que eu procuro […]”. São Francisco buscava seu caminho, e tudo pareceu tornar-se claro na pequena igreja da Porciúncula. “Ninguém me mostrou o que eu devia fazer, mas o Senhor mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho” (Testamento 2).

Este trecho do teólogo franciscano Michel Hubaut (1939-) nos permite compreender tal momento da existência do Poverello e − quem sabe? − de nossa trajetória pelo tempo de viver.

“Francisco descobre que a fé é uma chama muito frágil no meio da noite. Vai adentrar-se na fé como alguém que se dispõe a abrir um poço no deserto, como quando revira e revira a terra para encontrar ali um tesouro. Nunca se esquecerá desta primeira etapa em que descobriu que a aventura evangélica começa sempre por um ‘rasgão’. O homem ‘velho’ dobrado e voltado sobre si mesmo como que ouve o estalar dos ossos quando consegue ficar de pé e abrir os braços livres à luz de Deus que quer dele tomar conta. Como acolher a gratuidade dos dons de Deus sem deixar cair de nossas pobres mãos nossas pseudorriquezas. Aqueles anos foram decisivos para o futuro do Poverello. O Evangelho fez com que sentisse uma dor como o bisturi de um cirurgião. A pacífica homilia que mantinha adormecida a assembleia dominical se converteu para ele em um evangelho de fogo. O contrário do medo é precisamente a fé. Ter a coragem de arriscar tudo. Renunciar ao desejo de manejar sua vida, seus bens, de cada seguir como solitário seu caminho, para abandonar-se à vontade de Deus, para entrar em seu projeto amoroso para cada um de nós. Esse é todo o mistério da fé. Não é possível compreender nada de sua vida, quando se deixa de lado este fundamento inicial. Sua conversão é o desejo do homem que se abre ao desejo de Deus”.1

Há instantes como esse, em que uma simples palavra torna-se, de repente, palavra de vida. Quem sabe uma palavra muitas vezes ouvida, mas nãoFoto EspiritualidadeFranciscana 03sJunho23 escutada de verdade. É como um nascimento, um futuro que se abre. Uma luz que quase ofusca. Tudo tão extraordinário que se experimenta necessidade de bem entender o que está acontecendo para não se cair em ilusões. Francisco pede explicações ao sacerdote. As elucidações dadas confirmam o que ele havia ouvido e enchem seu coração de alegria. Um coração dilatado. Ir pelo mundo…

“Francisco é um ser de desejo. Carrega em si aspirações, mas não consegue exprimi-las e não sabe como colocar as coisas em prática. A Palavra vai esclarecê-lo. Em nossos dias, não poucos homens e mulheres aspiram a felicidade e buscam seu caminho. Um certo número se deixa atrair pelas seitas, filosofias, técnicas orientais. Outros andam atrás de revelações e aparições. Francisco teve a grande oportunidade de ouvir o Evangelho no bom momento. Como fazer com que o Evangelho seja hoje percebido como Boa-Nova?” (Antonin Alis).

Nota

• HUBAUT, Michel. El caminho franciscano. Navarra: Editorial Verbo Divino, 1984. p. 18-19.

 

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