Assembleia litúrgica celebrar com fé (parte 4)

abr 23, 2023Maio 2023, Momento Litúrgico, Revistas0 Comentários

[lwptoc]

Vida eclesial e litúrgica a partir do Concílio Vaticano II

Coisa bonita de se ver é uma comunidade participante nas celebrações. É um espetáculo para o coração testemunhar uma comunidade vibrante e integrada nas orações, nos gestos e nos cantos. Assim, em nossos dias, mesmo depois de sessenta anos do Concílio Vaticano II (1962-1965) insistindo na participação ativa, consciente e frutuosa dos fiéis, ainda é um grande desafio promover fiéis que participem nas respostas, nos cantos e nas dinâmicas dentro dos rituais. Podemos ainda encontrar presidências das celebrações que não levam as assembleias a integrar-se de forma viva e eficaz na realização dos ritos. São necessárias gerações para mudar mentalidades, mas também são necessárias as intenções e a dedicação dos responsáveis pelo culto, para que essa participação seja progressiva e constante. Segundo alguns estudiosos, muitos cristãos católicos se evadiram, pois a participação nos rituais não os seduzia ou conquistava.

Para além da fé e da própria religiosidade, o fator humano (emoção, envolvimento e valorização) é muito importante na fidelização dos nossos filhos espirituais. Não foi simples nem tão tranquilo notar, a olhos vistos, a evasão de muitos fiéis e não podemos cruzar os braços diante deste quadro estatístico preocupante. É preciso rever posturas e reencontrar caminhos, para que os cristãos católicos fiquem satisfeitos em nossas celebrações sacramentais e da religiosidade. A luta é árdua e contínua e bem sabemos que a animação da vida litúrgica possui um papel importante nesse processo de fortalecimento de nossas assembleias.

Assembleia − um breve olhar histórico

Todos os períodos da história, em todos os campos, têm suas proposições, suas grandezas e seus limites. Não é diferente para o campo litúrgico de nossa Igreja. Nessa retrospectiva, não se trata de condenar ou minorizar os argumentos do passado, uma vez que todos foram gestados nas circunstâncias concretas, considerando o contexto e os fatos históricos. Nosso olhar retrospectivo serve para buscarmos novas luzes para clarear o presente e resgatar elementos mais frágeis dos períodos anteriores. Entre esses campos frágeis, encontramos a “participação da assembleia”.

De fato, todas as vezes que ouvimos testemunhos da vida litúrgica em tempos pré-conciliares, deparamo-nos com o retrato da assembleia mais passiva e menos envolvida na realização dos rituais. Os estudiosos da eclesiologia definem esse período como “clericalização” da Igreja, que influenciou a dinâmica das celebrações. Uma prova dessa concepção, para o presidente da liturgia, usa-se o verbo “celebrar”, ao passo que, para a assembleia, deparamo-nos com verbos como assistir, ver, ler a missa ou os demais rituais. Esta concepção litúrgica é originária dos ritos sacrificais sacerdotais. Vamos buscar a origem dessas concepções clericalizadas dos rituais.

A maior influência religiosa para os ritos cristãos advém do universo litúrgico judaico. Na concepção sacerdotal da vida litúrgica, encontramos a prática do sacrifício cruento de vítimas, particularmente o cordeiro (cf. Lv 1−7). Para esse sacrifício, os fiéis não procedem por si mesmos, mas delegam para um sacerdote consagrado, que imola as vítimas em nome da comunidade e em seu favor. Se é assim, quer dizer, os sacerdotes são delegados pelos fiéis, que lhes entregam as vítimas e mesmo pagam pelo serviço religioso, eles não precisam estar presentes durante as oferendas. Em alguns casos, são mesmo proibidos de tomar parte nos sacrifícios, que podem ser secretos. Semelhante a muitos grupos humanos, antigamente e em todos os tempos, esse holocausto se realiza em um templo, sobre um altar, com roupas e instrumentos sagrados.

A luta é árdua e contínua e bem sabemos que a animação da vida litúrgica possui um papel importante nesse processo de fortalecimento de nossas assembleias.

Mesmo em nossos dias, encontramos grupos humanos que realizam tais sacrifícios, como forma de unir-se à divindade e estar em comunhão com os deuses e com seus antepassados. Com o fortalecimento da dimensão sacrifical da Ceia Eucarística, que é o ritual mais significativo de nossas comunidades cristãs, esvaziou-se a integração da assembleia litúrgica.

Com o passar dos séculos, durante os séculos medievais e particularmente pós- Concílio de Trento (1545-1563), os fiéis foram se acomodando na condição de assistentes dos rituais. Eles foram encontrando meios de participar na liturgia de forma, digamos, paralela, como as devoções populares, as práticas religiosas dentro das celebrações, como o rosário rezado durante o ritual eucarístico. Diante dessa realidade, o Movimento Litúrgico procura resgatar a participação da assembleia. Podemos constatar que uma das conquistas litúrgicas e eclesiais mais importantes a partir da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium: sobre a Sagrada Liturgia1, do Concílio Vaticano II, foi a recuperação e a valorização da assembleia celebrante.

Segundo esse documento, a assembleia ganha importância fundamental, pois o conceito eclesial de povo de Deus se impõe como uma “uma comunidade de fiéis, hierarquicamente constituída, legitimamente reunida em certo lugar para uma ação litúrgica e altamente qualificada por uma particular e salutar presença de Cristo”.2 E mais ainda: “Sempre que os ritos comportam, segundo a natureza particular de cada um, uma celebração comunitária, caracterizada pela presença e ativa participação dos fiéis, inculque-se que esta deve preferir-se, na medida do possível, à celebração individual e como que privada” (SC, n. 27).

Nessa perspectiva conciliar, a comunidade reunida na fé para celebrar é muito mais que uma plateia ou um grupo que assiste a um espetáculo. A assembleia é um sacramento verdadeiro de salvação, um encontro de fiéis que compõem o corpo místico de Cristo. Ela é essencial e faz mesmo parte da natureza da liturgia, pois esta é essencialmente comunitária. Aliás, nessa concepção, os padres conciliares distinguem a liturgia dos pios exercícios (cf. SC, n. 13), que são sempre caminhos de comunhão com Deus. Reunido pela fé, em assembleia, o povo de Deus celebra a memória e manifesta a grandeza do Senhor, com louvações e contemplação. Todos os componentes do rito, como os cantos, os gestos, os símbolos, as leituras e as orações, são instrumentos para congregar os fiéis reunidos que louvam a Deus e buscam a própria santificação. Como encontramos na Instrução Geral ao Missal Romano, “esta constituição do povo em assembleia deve ser constituída em todos os ritos, mas o mais evidente é a ceia eucarística, onde vive-se o mistério litúrgico mais intensamente” (IGMR, n. 47).3

Assembleia litúrgica e suas características

Assembleia litúrgica cristã é o povo de Deus reunido em nome de seu Senhor, para louvar, agradecer e contemplar, pela fé, o Deus da vida, unificado pelo Espírito Santo, na busca da santificação. Essa congregação se erige a partir de algumas dimensões fundamentais, para que sua sacramentalidade seja eficiente, significativa e eficaz.

Em verdade, “para assegurar esta eficácia plena, é necessário, porém, que os fiéis celebrem a Liturgia com retidão de espírito, unam a sua mente às palavras que pronunciam, cooperem com a graça de Deus, não aconteça de a receberem em vão. Por conseguinte, devem os pastores de almas vigiar por que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente” (SC, n. 11).

Antes de tudo, como premissa fundamental, as pessoas que se reúnem devem ser uma “assembleia de crentes”. Somos reunidos pela fé e esta é a motivação fundamental. Desde os tempos bíblicos e para sempre, os cristãos reúnem-se pela fé, para ouvir a Palavra divina, para cear em comunhão e partilhar a própria história. Nesse sentimento espiritual comum, a fé promove a verdadeira comunidade e desenvolve entre seus membros laços afetivos de amor e fraternidade. Portanto, fica incipiente uma comunidade que se reúne em grandes multidões, presta um culto individualizado a Deus e não cria laços fraternais. A fé é o sentimento transcendental em comunhão, que torna a assembleia o corpo místico do Senhor. Ela sacraliza a assembleia. Sem a fé e a participação, o grupo reunido torna-se público ou plateia, como se participasse de um espetáculo. A fé e a convivência comunitária s fazem-nos assembleia de crentes.

Não temos assembleia cristã sem que estejamos em nome do Cristo. A assembleia é uma “reunião em nome do Senhor”. Trata-se de um grupo com laços afetivos, mas integrados pela fé. Por certo, os laços afetivos são fundamentais, mas é a consciência da presença de Cristo que faz o grupo se tornar “corpo místico”. A reunião dos fiéis torna-se unificada pela ação divina do Cristo, que faz que todos sejam um, como Ele e o Pai são um, compondo uma família mística (cf. Jo 10,30). Há duas direções desse encontro comunitário: primeiro, o sentido ascendente, pelo qual a assembleia louva e glorifica o Senhor e, igualmente importante, o sentido descendente que realiza a santificação dos fiéis, pela graça que recebem do Alto (SC, n. 7). Considerando que o cristianismo é uma religião fundamentada no “mistério da encarnação”, esse encontro divino-humano instaura uma direção horizontal, que propicia e impõe a unidade fraterna dos membros da assembleia.

Finalmente, temos de entender a “assembleia como ecclesia”, pois não podemos falar em verdadeira assembleia cristã sem que nos rituais se criem laços de fraternidade e projetos de solidariedade. Mesmo considerando importantes os movimentos de louvação e comunidades de multidão, é urgente fomentar um cristianismo que fecunde fraternidade. Somos a Igreja da louvação, da convivência e da comunhão. Somos uma Igreja profética e não alienante. As individualidades não são destruídas no culto, mas os elementos comuns (a mesma fé, o mesmo evangelho e a comunhão existencial) unificam as pessoas em comunidade e a Igreja é essencialmente comunidade.

Nos tempos atuais, surgem aos borbotões grupos religiosos que se fazem multidão e mesmo massa, perdendo elementos essenciais da vida cristã, que, além de ser contemplação, é comunhão e missão. A comunidade em prece vive em unidade concreta, mas transcende como um povo que se espiritualiza em Jesus Cristo e se torna uma comunidade espiritual.

Para viver a liturgia como assembleia

Missa

Há diversos meios para que a vida litúrgica seja eficiente e eficaz, promovendo a construção de verdadeiras comunidades. O próprio texto conciliar (a Sacrosanctum Concilium) coloca a vida litúrgica como promoção de verdadeiras assembleias. Precisamos, antes de tudo, promover celebrações envolventes e sedutoras, capazes de fidelizar seus participantes. As celebrações devem acontecer de tal forma que os seus membros saiam contentes e realizados na sua dimensão humana, quanto religiosa. Promover celebrações onde o povo reze de verdade, tenha momentos elevados de contemplação e haja intercomunicação entre todos. As pessoas precisam se reconhecer na comunidade, os ministros precisam sentir a presença de cada fiel, cumprimentá-los, saber de suas famílias e de sua história. A recepção dos fiéis os faz importantes, pois eles se sentem considerados como membros da mesma família cristã. Nenhum fiel deve se sentir anônimo na celebração, como se fosse apenas mais um número na multidão. Eles têm nome, rosto e história.

Ressalta-se que homilias longas e celebrações monótonas e desprovidas de afetividade esmorecem os participantes. Todos somos responsáveis e boas equipes de serviço para as celebrações, com a presidência, promovem liturgias elevadas espiritual e humanamente agradáveis. Afinal, a liturgia é o momento mais elevado da vida cristã, como disse o Concílio: fonte e ápice da vida cristã (cf. SC, n. 10).

Notas

1 PAULO VI, Papa. Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium: sobre a Sagrada Liturgia. Roma, 4 dez. 1963. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html. Acesso em: abr. 2023.

2 Disponível em: https://paroquiasaojosebaeta.com.br/2022/04/05/acolher-o-dom-da-semana-santa/. Acesso em: abr. 203.

3 Cf. Disponível em: https://www.veritatis.com.br/instrucao-geral-sobre-o-missal-romano/. Acesso em: abr. 2023.

4 BOGAZ, Antônio Sagrado; HANSEN, João Henrique. Liturgia no Vaticano II: novos tempos da celebração litúrgica. São Paulo: Paulus, 2014. p. 47.

Autores

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *